sábado, julho 07, 2012

Notas Históricas - A Tuna em Portugal - I

Texto originalmente escrito e dirigido ao público sul-americano (por isso muito abreviado e simplificado).




Para memória futura, aqui deixo o 1.º de uma série de dois artigos escritos a pedido do administrador do grupo "Bigornia" (Facebook), com o intuito de dar a conhecer aos tunos sul-americanos o processo de desenvolvimento das tunas em Portugal.

Naturalmente, muitíssimo fica por dizer neste retrato "à vol d'oiseau".

A Tuna em Portugal - I - Contexto


Em Portugal, o desenvolvimento dos agrupamentos a que chamamos tunas dá-se em duas etapas. A primeira vai de 1870 até sensivelmente 1950. A segunda inicia-se em 1984.


Hoje em dia, em Portugal as tunas são agrupamentos essencialmente urbanos e associados a estabelecimentos de ensino superior, quer seja de âmbito universitário, quer politécnico. A criação de tunas a um ritmo exponencial que se verificou entre meados da década de 1980 e ao longo dos anos 90 - geralmente designado por “boom" - é um fenómeno único, quer no panorama cultural português, quer a nível internacional, no que a estes agrupamentos concerne, passando-se de apenas 5 agrupamentos estudantis em 1984 para mais de 200 em 1995.

Só na cidade do Porto existem actualmente mais de 70 tunas (masculinas, femininas e mistas) com actividade regular, pelo que o Porto é, sem dúvida (e de longe), a cidade do mundo com mais agrupamentos tuneris.

Apesar desta vitalidade, a tuna portuguesa não tinha sido objecto de uma investigação "científica": considerada culturalmente "inferior", desprezada pelos círculos musicais pela “falta de qualidade”, vista nos meios da sociologia e da história como um "não-tema", a tuna foi o “menos visível” dos “fenómenos visíveis”. A publicação em Abril de 2012 da obra “Qvid Tvnae? A Tuna Estudantil em Portugal” veio inaugurar uma nova fase  de abordagem histórico-científica e desconstrução das narrativas míticas que se foram desenvolvendo em torno do fenómeno.


I Etapa: 1870 - c.1950

1888 assinala a institucionalização da tuna em Portugal, com a fundação da Estudantina Académica de Coimbra.

Entre 1290 e 1912 existiu apenas uma universidade em Portugal, situando-se ora em Coimbra, ora ocasionalmente em Lisboa. É uma das universidades mais antigas da Europa ainda em funcionamento, a seguir a Bolonha (1088), Oxford (1096), Paris (1170), Palência (1175-1180) Cambridge (1209), e Salamanca (1218).

A fundação da Universidade de Coimbra deve-se a D. Dinis, neto de Afonso X, O Sábio, de Leão. Dada a especificidade geográfica de Portugal (um rectângulo com aprox. 200x800 km), Coimbra situa-se praticamente no centro geométrico do território, a meio caminho entre as duas cidades mais importantes - Lisboa e Porto.

Estas circunstâncias não potenciaram o surgimento da figura do “corredor de tuna”, ao contrário do que sucedeu em Espanha, uma vez que a distância entre a Universidade e a localidade de origem dos estudantes era relativamente curta. Por outro lado, a frequência da Universidade era cara, pelo que só estava ao alcance dos mais ricos. Também aqui se verifica uma diferença em relação a Espanha: não encontramos as figuras do “sopista” e do “gorrón”, o moço que vai servir o estudante rico e que frequenta a universidade a troco de uma propina praticamente simbólica.

Como se sabe, estes estudantes pobres eram os que tinham necessidade de angariar a subsistência entre anos escolares, prática que ficou conhecida como “correr la tuna”. (1)

Nos périplos que faziam durante as férias, estes bandos de escolares pobres (sobretudo salamanquinos) faziam também incursões em Portugal. Hoje em dia, a palavra “tunante” existe no vocabulário português com o sentido de “burlão”, “falsário”. Dado curioso: a primeira vez que a palavra “tuna” ocorre num dicionário é justamente num dicionário português de 1719...

A prática de “correr la tuna” não era, por isso, desconhecida em Portugal, mas não teve expressão entre os escolares lusitanos.

A verdade é que há referência a tunas ou estudantinas em Portugal antes de 1888. A «Estudiantina Española “Fígaro”» passou em Portugal onde deu 5 concertos (em data incerta). Os jornais publicam caricaturas de políticos fardados de tunos; há tunas integradas em quadros de operetas.  O fenómeno é conhecido, mas não “praticado”.

No Carnaval de 1888, a Tuna da Universidade de Santiago de Compostela desloca-se a Portugal com o intuito de se apresentar em Coimbra, no Porto e em Lisboa. Foi uma tournée apoteótica, vivendo-se uma espécie de “tunomania” em Portugal. Em Março desse mesmo ano começa a preparação de uma grupo semelhante, que se estreou logo em Maio desse mesmo ano.

Estava dado o pontapé de saída. Em 1890 foi a vez do Porto (Estudantina Académica do Porto) e, em 1895, Lisboa (Estudantina Académica de Lisboa).

Este projecto conimbricense teve uma duração efémera. Em 1894, surge a Tuna Académica da Universidade de Coimbra, da qual fazem parte alguns elementos da, entretanto extinta, estudantina de 1888.

À semelhança do que acontecia em Espanha, estes agrupamentos tinham uma actividade centrada nas celebrações do dia da Independência (1 de Dezembro) e do Carnaval.

Durante estes anos assistiu-se à criação de um número impressionante de tunas fora do meio académico. A estas tunas daremos o nome de “tunas populares” por oposição às “tunas  estudantis”. Preferimos o termo “estudantis” a “universitárias” porque, como vimos, até 1912 houve apenas uma universidade em Portugal. No Porto e em Lisboa havia ensino superior, sim, mas politécnico. Além destes, havia escolas de nível secundário (Liceus) em todas as capitais de distrito. Ora foi precisamente a nível dos liceus que a tuna estudantil conheceu maior expressão. E não apenas no território de Portugal continental: vamos encontrar tunas de liceu em todas as antigas colónias - Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe - inclusivamente em Goa, na Índia!

A nível popular, chegou a haver tunas em praticamente todas as localidades portuguesas, chegando mesmo a haver aldeias com duas tunas.

Este movimento de criação de tunas começou a abrandar por volta dos anos 50, não demorando duas décadas a que se extinguisse quase totalmente, muito por força do surto de emigração e da guerra colonial dos anos 60/70.

A nível estudantil, as tunas apresentavam o “modelo orquestral” herdado da «Estudiantina "Fígaro”» e das primeiras estudiantinas espanholas que visitaram Portugal em finais do século XIX: repertório de pendor clássico, disposição orquestral, com maestro, apresentação de quadros e entreactos, acção beneficente.

Este modelo manteve-se nas 3 únicas tunas estudantis que sobreviveram dessa época: Tuna Académica da Universidade de Coimbra, Tuna Académica do Liceu de Évora e Tuna do Orfeão Universitário do Porto/Tuna Universitária do Porto.

A partir de 1984, dá-se uma ruptura radical com este modelo.


(Fim da Parte I)


1) Importa referir, para que não haja más interpretações, que estes bandos de escolares nada têm que ver com as tunas tal como as conhecemos. O único ponto de contacto é uma palavra: "tuna".

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