quarta-feira, junho 05, 2013

Notas de Traje no Porto - do argumento igualizador.

Um artigo assaz interessante, datado de 1888, em plena época de mudança de paradigma do traje estudantil (com o abandono das vestes talares, de feição eclesiástica, para o modelo burguês, anti-clerical), onde a Academia do Porto (ainda sem Universidade - que só será criada em 1911) se une a pedir a obrigatoriedade do porte do traje nas suas escolas de instrução secundária e superior (o traje estudantil já estava em uso, mas sem a mesma obrigatoriedade que na Universidade).

Durante uma investigação feita ao acervo do Comércio do Porto (Arquivo Municipal de Gaia)encontrámos, pela 1ª vez, o argumento do traje como meio de esbater as diferenças sociais (não para explicar a sua origem, mas, aqui, para expor uma das suas grandes virtudes, segundo os signatários).

Esse pedido, que encontrámos no periódico em causa, ilustra o desejo dos estudantes portuenses serem equiparados com os de Coimbra (e isso sucederá também em Lisboa e resto do país), dentro do movimento que se alastrou a todo o território e que reclamava defesa da identidade (estética, nomeadamente) do estudante português, através do uso obrigatório de um uniforme inequívoco e transversal.


Foi essencialmente a pressão dos alunos do 3º ano da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que dá novo fulgor ao uso capa e batina, a qual já estava em uso pelos escolares do Liceu, nomeadamente.
Com a formação da Tuna Académica do Porto (Estudantina Portuense), em Março de 1888 (com alunos do liceu, da Politécnica e da Médico-Cirúrgica, entre outros), o empurrão do nacionalismo gerado pelo Ultimatum e requentado pelo 31 de Janeiro de 1891, e, finalmente, o debutar de festividades carnavalescas e de fim de ano (Enterro da Farpa, Festa da Pasta), estavam lançados oa alicerces para o sedimentar da capa e batina no seu novo modelo burguês, na cidade do Porto
, de que este artigo acusa essa  ferverosa adesão.

Se é sabido, e comprovado, que o traje estudantil, ao longo dos séculos, nunca teve pretensão de distinguir ricos de pobres, mas tão somente o foro académico (distinguir os estudantes do resto da população - de que os regulamentos vários ligados ao foro académico e ao uso da indumentária atestam), não deixa de ser preciosa esta menção, entre os vários argumentos apresentados para suportar o pedido (aliás, se virmos bem, qualquer predicado serve quando queremos justificar algo), porque nos situa cronologicamente no ponto a partir do qual o mero argumento irá, mais tarde, tornar-se, erroneamente, explicação.

Torna-se, assim, este artigo, um documento ímpar que refere, embora apenas como argumento (ou seja, como consequência), que uma das virtudes do traje era o de nivelar e igualizar os estudantes, quanto ao seu estatuto social.

Os argumentos que constam do manifesto, então dirigido ao Rei, D. Luís I,  (e pedindo diferimento através da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino) foram os seguintes:

  1. Economia aliada à máxima decência no vestuário;
  2. Evitar distinção e rivalidades de aparências de fortuna em uma classe onde somente devem fomentar o desenvolver-se de distinções e rivalidades de talento, aplicação e bons costmes;
  3. Provocar maior união, não só do estudante portuense, mas do estudante português (...);
  4. Facultar aos menos favorecidos de meios pecuniários, mas foverecidos de talento e de vontade, mais fácil ingresso nos templos da ciência com manifesta utilidade do estado sem prejuízo algum das suas finanças.

Como podemos ver, enaltecem-se as virtudes do traje, sendo que o artigo nos dá a entender que o pano em questão (o modelo burguês de que deriva a actual capa e batina) estaria mais ao alcance da bolsa dos estudantes do que o anterior uniforme talar (e mais em consonância com o ideário político em voga) . Qual o preço praticado, isso, não sabemos, para afiançar com toda a segurança.

Parece-nos, igualmente, que o argumento da igualização entre estudantes (em clara oposição às anteriores vestes que nunca foram totalmente uniformes entre escolares) poderá, quiçá, advir desse mesmo sentimento ou ideário republicano (e inspirado na França revolucionária da "Liberté, Égalité et Fraternité", que é a pátria da "Déclaration Universelle des Droits de l'Homme", de 1789) de tornar todos iguais (algo que, como sabemos, será sempre utópico).

Estamos, assim, em crer que este documento nos vem indiciar a origem dessa explicação truncada sobre a origem do traje que, durante anos, foi, erradamente, doutrinada nas praxes, onde se dizia que o traje tinha sido criado com esse propósito.
Convém relembrar que, mesmo depois de se generalizar, o modelo burguês, a "actual" capa e batina, não deixou de possibilitar a exibição de diferenças, bastando (re)lembrar, a título de exemplo, que os coletes, durante as primeiras décadas do séc. XX, se apresentavam de várias cores e feitios, tal como as gravatas).

Sabemos, agora, um pouco mais.


O Comércio do Porto, de 29 Fevereiro de 1888, página 1.

4 comentários:

Anónimo disse...

Os grandes erros tomados por este blog são exactamente estes.
Uma vez, uma Prof. de História do meu secundário dizia que, apesar da grande vantagem de reunir muitos à volta do tema "história" junto da televisão, José Hermano Saraiva não era um historiador...talvez, diria eu, um contador de histórias...
Mas o erro que ele fazia apontado por muitos, que o identifico aqui na maioria das suas doutrinas no blog, é pegar num documento histórico e tapar-se cegamente por ele justificando que a história é esta e não aquela. Mas a história não se faz nem de um só documento, nem de muitos, tem de se ver num todo, globalmente.
As coisas não são preto ou branco, muitas vezes são cinzentas. Isto não justifico, os reais erros académicos que se cometem.
O traje até pode ter sido criado inicialmente para criar a "classe dos estudantes" (chamemos-lhe assim), mas algures no tempo ganhou-lhe o outro significado da igualdade e da "não diferenciação social entre ricos e pobres". Já achava isto, quem uso o traje sente isso inerentemente, mesmo havendo só indícios que foi criado para estabelecer a "classe estudantil". Este documento vem provar a minha desconfiança, até mais cedo do que tinha em mente de "ter ganho" cumulativamente outra simbologia ou motivo.

Este blog tinha muito a ganhar se deixasse mais em aberto possibilidades, se tivesse mais sensibilidade acerca de tudo e não ser tudo "documentos documentos". Lá está, não ser preto ou branco tudo. Tenho pena.
Pode ser que apareçam outros iguais a este, mas é indiferente para quem sente e associa sem precisar de documentos. Isto é uma ilação fácil, lógica.

J.Pierre Silva disse...

Caro(a) anónimo(a),

Não lhe percebo a intervenção. Fala de José Hermano Saraiva como contador de histórias, esquecendo-se que ele foi licenciado na Universidade de Lisboa, em Ciências Histórico-Filosóficas, em 1941, e em Ciências Jurídicas, em 1942, e que o seu trabalho na área da história foi, e é, plenamente reconhecido.
Não será por contar história, como diz, que ele foi distinto membro da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa da História e da Academia de Marinha, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, no Brasil, bem como Sócio Honorário do Movimento Internacional Lusófono. E já nem vou recordar-lhe as obras que ele produziu ou as várias condecorações que recebeu.
Mas a título de exemplo, recordo-lhe que a "História concisa de Portugal", já com 25 edições é o livro nacional com maior distribuição mundial.
Parece-me que andou a ouvir muitas “estórias”, caro anónimo.

Você tece acusações sem sentido e sem sequer apresentar quaisquer créditos para as tecer.
O documento apresentado oferece apenas a leitura que lhe foi dada, e não outra. Se tiver outro documento que possa contrapor para acusar este blogue de deturpar os factos, tenha a gentileza e verticalidade de o fazer.
O N&M, sobre esta matéria, não encontrou, até hoje, nenhum documento que contradissesse a teoria de que o traje existiu durante séculos para distinguir os escolásticos enquanto tal, teoria defendida por historiadores e especialistas na matéria.
Onde está, neste documento, escrito que o traje foi criado para igualizar ricos e pobres? Ou o que lá está é, no meio de várias virtudes a ele atribuídas o facto de ele ter essa valência?
Não confunda o cu com as calças, meu caro, seja um pouco mais ponderado e pertinente.

Também embarca nas teorias que dizem que o traje era preto por ser simbologia da noite? Que era preto para fugir à polícia académica?
Pseudo-teorias sobre as simbologias atribuídas em Praxe são aos pontapés, desde o nº ímpar, à cor do traje, aos rasgões…….. and so one, e o N&M procura explicar a natureza das coisas, com base não no “ouvi dizer”, mas factos. E quando não tem firme certeza, pelo menos apresenta possibilidades plausíveis e fundamentadas.

Até aparecer um documento que seja inequívoco sobre a razão da mudança do traje talar para o burguês, que afirme tacitamente que o foi para equiparar ricos e pobres (coisa que carece de fundamentação documental)………..nessa altura outro galo cantará (e certamente que, perante factos, não argumentarei e reconhecerei a verdade dos factos com toda a humildade), mas, até lá, o que se sabe é o que o blogue tem afirmado, com base não em conjuncturas ou extrapolações, mas investigação e suporte em estudiosos creditados …………..coisa que a si lhe falta, manifestamente.

Não confunda causa com efeito, pois o que o documento mostra não permite em momento algum estabelecer o que só você pretende, tanto que não detém você qualquer documento ou fonte sobre os propósitos da criação do traje burguês como novo pano académico (e este documento não é um deles, fique descansado).

O blogue deixa em aberto muitas possibilidades, mas tem todo do direito de interpretar, fruto daquilo que a si não lhe assiste: investigação in loco, conhecimento do contexto em que se insere o documento e estudo sério e isento.

Os factos nunca são cinzentos: são o que são, e se algo não pode acusar este blogue é precisamente de lhe faltar estudo, documentação e, mais do que isso, ser muitas vezes o único a tratar e partilhar as matérias que aborda, fazendo-o em primeira mão.

E você….quem é, que faz e que propriedade lhe assiste para refutar a seriedade do N&M?

É, de facto, fácil associar e tirar ilações sobre o N&M, quando movidas por uma qualquer inveja e sem apresentar provas das acusações que lhe são feitas.

Eduardo disse...

Caro Anónimo:

gostaria apenas de chamar a atenção para estes dois parágrafos da nota do WB:

"Se é sabido, e comprovado, que o traje estudantil, ao longo dos séculos, nunca teve pretensão de distinguir ricos de pobres, mas tão somente o foro académico (distinguir os estudantes do resto da população - de que os regulamentos vários ligados ao foro académico e ao uso da indumentária atestam)," - aqui tem razão, o WB. Note que o traje académico não foi originalmente criado a pedido dos alunos, mas uma imposição das autoridades (Reitoria e/ou Rei); no caso em apreço, é tudo o contrário: são os alunos do Porto quem pede que lhes seja concedido o privilégio de o usar. E repare como continua o mesmo parágrafo:

"não deixa de ser preciosa esta menção, entre os vários argumentos apresentados para suportar o pedido (aliás, se virmos bem, qualquer predicado serve quando queremos justificar algo), porque nos situa cronologicamente no ponto a partir do qual o mero argumento irá, mais tarde, tornar-se, erroneamente, explicação." - Ou seja, o que o WB afirma é que teria sido mais ou menos por esta altura que este argumento (o de que o traje igualiza os alunos entre si, esbatendo as diferenças de fortuna) passa a fazer escola como explicação para a criação do mesmo. Até aqui, também me parece que o WB tem razão. Discordo talvez um pouco, no seguinte aspecto: parece-me que nesta altura o argumento "nivelador" já estava profundamente enraizado. Já o Trindade Coelho o apresentava como um virtude do traje (In Illo Tempore), criticando os estudantes que, em Coimbra, á noite saíam "à futrica".

E repare como continua o WB:

"Torna-se, assim, este artigo, um documento ímpar que refere, embora apenas como argumento (ou seja, como consequência), que UMA DAS VIRTUDES DO TRAJE ERA O DE NIVELAR E IGUALIZAR OS ESTUDANTES, QUANTO AO SEU ESTATUTO SOCIAL." (maiúsculas minhas)

Também aqui me parece que o WB diz o mesmo que o meu caro anónimo.

Há de facto aqui uma subtileza: o WB diz que o traje não foi criado com essa intenção, mas acabou por ter esse efeito.

Não tenha o caro anónimo a mínima dúvida de que a intenção, ao criá-lo, foi o de fazer com que os estudantes fossem facilmente identificáveis no meio da multidão. Note o caro anónimo que a Universidade foi originalmente instalada em Lisboa - não em Coimbra, que à data pouco mais seria que uma aldeia, pelo que qualquer tipo novo era imediatamente notado. Contudo, em Lisboa, seria mais difícil perceber quem era quem...

Se quiser fontes impressas, poderei indicar-lhe algumas que vão nesse sentido.

Na verdade, quem pode dizer exactamente tudo o que passou pela cabeça de quem se lembrou de fazer com que os estudantes passassem a vestir-se de uma forma diferente da do resto da população? Será que também não pensou numa forma de esbater as diferenças entre estudantes, ao mesmo tempo que os distinguia do resto da população? Quem sabe e pode dizer com certeza absoluta que sim ou não?

Os documento mais antigos apenas referem a necessidade de fazer com que os estudantes se apresentassem vestidos de forma honesta e decente no edifício da Universidade, nada referindo sobre a igualdade entre eles.

Como vê, no essencial o WB até está de acordo consigo.

João Caramalho Domingues disse...

Boa descoberta! Obrigado!

Tenho só que dizer que não conheço nenhum dado que aponte para o uso de capa e batina pelo estudantes do Liceu do Porto antes de 1889.
Pelo contrário, se de facto esse uso já existisse, não seria um argumento a utilizar na petição?