segunda-feira, setembro 23, 2013

Notas às Capas Negras. Tradição com passado.

Não é especialmente pelo filme, numa detalhada análise técnica, mais ao gosto de verdadeiros cinéfilos, mas um olhar arguto para algo que muitos esqueceram de ver: o que é genuino, essência e fundamento das coisas.

É uma análise sobre um filme que documenta como era, de facto, a Praxe e a Tradição, longe dos papismos e invenções que se vieram a introduzir, nomeadamente do Código de Praxe de 1957 em diante.
Um artigo delicioso, pela mão do colega, e professor, Eduardo Coelho, e que deveria fazer pensar muito gente que acha saber de Praxe, a começar pelos que ocupam funções nos organismos que coordenam ou tutelam a praxis académica.
 
 
Aqui fica o texto (publicado em 1ª mão em 2012, no Blogue "Portvs Cale Tvnae", do meu querido amigo, o Dr. Ricardo Tavares):
 
 

“Capas Negras é um filme português, realizado por Armando de Miranda em 1947. Tem argumento de Alberto Barbosa e José Galhardo. Os principais actores são Amália Rodrigues, Alberto Ribeiro e Artur Agostinho, Vasco Morgado, Barroso Lopes, Humberto Madeira, António Sacramento e Graziela Mendes.
O filme foi estreado em Maio de 1947 e bateu todos os recordes de exibição até então. A seu lado está Alberto Ribeiro. Foi gravado na Real República do Rás-Teparta, na Rua dos Estudos, em Coimbra. Esta república viria mais tarde a mudar-se para o n.º 6 da Rua da Matemática, onde ainda hoje se encontra, em virtude da demolição de casas de habitação da alta coimbrã para construção das Faculdades. "Capas Negras" esteve 22 semanas em cartaz, tornando-se no maior sucesso do cinema português. Amália obteve o maior sucesso como actriz.”
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Capas_Negras

Não admira que o filme (http://www.youtube.com/watch?v=2wK6oQzd07g) tenha feito tanto furor à altura – atente-se no elenco. O enquadramento, em si, num espaço físico, social e “etário” que assume quase as proporções de mito – a Coimbra dos relatos humorísticos e saudosos de Trindade Coelho, de Antão de Vasconcelos e de tantos outros que dão sentido à famosa quadra do Vira de Coimbra:

Coimbra, terra de encantos,
Fundo mistério é o seu:
Chega a ter saudades dela
Quem nunca nela viveu.

O encanto do filme reside precisamente na evocação desse espaço-tempo de sonho, que faz com que cada português sinta Coimbra um pouco também como sua e se reveja nas aventuras, venturas e desventuras de uma cidade eternamente jovem.

E é como “documentário” desse “sonho” - passe a contradição – que a película se torna especialmente eficaz.

Para nós, o filme começa a ter interesse a partir de 0:51:41, altura em que a acção se transfere para o Porto

Particularmente interessante é o discurso feito no jantar de despedida do “Coca-Bichinhos”. Antes de anunciar a partida do colega para o Porto, prática corrente à época – e que explica os fortíssimos laços que unem as duas academias e a influência (e até certo ponto descaracterização) que a praxe portuense sofreu por parte da praxe coimbrã(1), o “Manecas” (Artur Agostinho) proclama:

Estamos aqui reunidos na tasca da Ti’ Zefa para festejar o honroso convite que foi dirigido à Tuna e ao Orfeão de Coimbra para se irem exibir triunfalmente em terras de Espanha.

O filme segue o seu curso, com imagens do Porto dos anos 40 (Estação de S. Bento, pontes de D. Maria e D. Luís, Aliados, a Foz, o Coliseu...)

A 1:20:09, surge uma página de jornal com a seguinte “notícia”:

Partiu para Espanha a Tuna Académica de Coimbra que leva como cantor de fados o distinto advogado Dr. José Duarte.
O Jornal de Notícias prossegue:
MADRID, 9 – Estreou-se a Tuna Académica de Coimbra. Êxito extraordinário do Dr. José Duarte.
O Diário de Coimbra dá a seguinte nota:
VIGO, 26 – A Tuna e o Orfeon de Coimbra obtiveram um triunfo completo nesta cidade.
E, n’O Comércio do Porto:
De regresso da Galiza chegam hoje ao Porto a Tuna e o Orfeon da Academia de Coimbra.

Este destaque dado às deslocações dos agrupamentos tuneris portugueses ao estrangeiro (sobretudo a Espanha) era prática corrente. E era indiferente que a tuna fosse do Porto ou de Coimbra: a simpatia era idêntica, sendo os estudantes acarinhados pela imprensa de norte a sul do País.

Especialmente interessante para o “Portus Cale Tunae” é o facto de uma tuna ser filmada nesta cidade.

Em 1:20:46, vemos os tunos de Coimbra a sair da estação de S. Bento, onde foram recebidos pelos colegas do Porto e população em geral, saindo do recinto sob um fortíssimo aplauso e vivas a Coimbra. E nova cena deliciosa: o “Zé Duarte”, ainda trajado, acabado de chegar da digressão, corre ao Tribunal a defender a sua amada “Maria de Lisboa” (Amália Rodrigues), que desprezara injustamente. A quantos de nós não sucedeu já irmos para o trabalho ainda trajados, depois de uma digressão ao estrangeiro... ou às janelas das vizinhas...

Contudo, é a partir de 1:30:39 que assistimos a algo inédito – e, cremos nós, irrepetido - em todo o cinema português: uma tuna no grande ecrã.

A cena é filmada na escadaria do Tribunal de S. João Novo (Tribunal da Relação). A música – e sobretudo a letra – transportam o presidente do Tribunal para os seus tempos de juventude em Coimbra e abafam por completo o discurso moralista do Procurador do Ministério Público. A assistência já não consegue ouvir os argumentos sisudos, legalistas e eloquentes do esforçado tribuno. Debalde tenta fazer-se ouvir, mas já ninguém lhe presta atenção, transportados que estão todos pela música que chega do exterior.

E o filme termina justamente nessa nota etérea e quase onírica. A Tuna vem salvar uma inocente das garras de uma lei que se refugia nos aspectos formalistas para obter uma condenação exemplar. No entanto, e pela voz da Tuna, “outro valor mais alto se alevanta”: o amor redime mais que a justiça – um acto de justiça poética, na verdadeira acepção da palavra.

Pelo meio da trama ingénua, alguns aspectos importa retirar, no que à tuna concerne:
1) A popularidade e a estima de que a tuna estudantil goza junto da população em geral;
2) O sentido de fraternidade entre os elementos das duas academias, sem bairrismos bacocos e despropositados;
3) Curiosamente, o “estigma” social de que o “Dr. José Duarte” foi vítima, pelo facto de ser “fadista”, manifesto na ausência de clientes, que desconfiavam das competências científicas do “advogado-cantor”, preconceito que ainda hoje se faz sentir sobre os tunos;
4) A postura da tuna, que interpreta o tema de pé, na escadaria, algo absolutamente incomum numa altura em que as tunas actuavam sentadas;
5) Sendo de Coimbra, a tuna actua de capa pelos ombros, não de capa traçada, ao contrário do que tanto se tem apregoado e praticado;
6) A nível de instrumentos, temos bandolim, guitarras portuguesas e guitarras clássicas, sem qualquer instrumento de percussão visível.

Vimos isto e muitas mais coisas. Mas tão importante como o que vimos é aquilo que não vimos:

a) Vimos camaradagem franca e leal entre estudantes, independentemente da sua posição hierárquica, e entre academias;
b) Vimos uma espera de uma trupe a um caloiro;
c) Vimos que o veterano aparece para pedir protecção para o caloiro, não para agravar ainda mais a situação;
d) Vimos que a trupe pergunta “O que é pela praxe?” – não disparates em latinório macarrónico, como “Quid Praxis?”;
e) Vimos veteranos sempre trajados;
f) Vimos o à-vontade com que o caloiro “Já-cá-canta” (Humberto Madeira) convive com os outros repúblicos, mesmo com os veteranos, tratando-os por “tu”;
g) Vimos colegas mais velhos a brincar com colegas mais novos;
h) Não vimos imbecis a mandar “encher” e a berrar aos ouvidos;
i) Não vimos caloiros de olhos no chão, em posições humilhantes e com ar assustado;
j) Não vimos tanta imbecilidade a que hoje em dia se assiste gratuitamente, praticada em nome de uma invenção doentia a que infelizmente se colou com cuspo o nome de “praxe”;
k) Não vimos pretensos manda-chuvas em bicos de pés, a quererem ficar numa fotografia para a qual não foram convidados e onde fazem tanta falta como uma viola num enterro;
l) Não vimos a tuna a pedir licença fosse a quem fosse para ir onde lhe apeteceu ou fazer o que bem entendeu.

Pouco mais de uma hora e meia passada com um sorriso nos lábios. Definitivamente, um filme a ver e divulgar.

============
(1) De entre os nomes destes “imigrantes”, avulta o de António Pinho Brojo, que se deslocou para a Invicta pelas mesmas exactas razões que o nosso “Coca-Bichinhos”: frequentar a Faculdade de Farmácia. Este trânsito foi uma constante até aos anos 80, sendo frequente os estudantes de ambas as academias concluírem o curso na outra, fosse para seguirem planos de estudos que as respectivas universidades não ofereciam (Engenharia era um caso paradigmático), fosse para tentarem concluir uma cadeira cujo catedrático os tivesse “tomado de ponta”.

 
 
 




4 comentários:

Anónimo disse...

Após ler este artigo do N&M e sendo eu estudante, senti-me praticamente na obrigação de ver o filme..

A espetacularidade do mesmo deixou-me quase sem palavras, toda aquela vivência académica retratada, a união patente nos estudantes é sem dúvida algo de se lhe tirar o chapéu.

Como atual estudante sinto que essa união ainda em muitos casos está presente, o espírito mantém-se, no entanto, aquela simplicidade, aquela descontracção do estudante,a maneira como eram vistos pela população em geral, acho que se perdeu. É pena, por exemplo, o traje académico, já não ser tão frequentemente usado, é muito usado sim, mas na praxe ou em tunas. Outro ponto é mesmo os caloiros, pelo que me pareceu, eram sujeitos a gozo, no entanto, é interessante a comunicação deles, focando claro o que mais apareceu no filme, com os demais "superiores", que eram sempre tratados por tu. Não vi, também, os caloiros a serem sujeitos a praxe física, das que hoje em dia vemos - gostei de ver que antes de o veterano dar proteção, um determinado caloiro ia ser sujeito a rapanso (foi o que me pareceu), algo que ainda hoje se mantém, sendo que, seria óptimo ver um artigo retratado no notas e melodias, que falasse um pouco dessa situação, designadamente sanções de praxe.

Ainda, alguns pontos interessantes que destaco no filme, é o fato de muitas vezes a capa estar no ombro direito, uma das muitas regras hoje em dia impostas sem ter qualquer fundamento (... capa no ombro esquerdo), reparei em alguns rasgões nas capas, também o facto de não haver emblemas em nenhuma, recordo-me ainda de usarem bastantes vezes expressões em latim, até numa das paredes da casa aparecia "Dura Praxis Sed Praxis", no entanto, nenhuma expressão que me recorde, foi usada para a praxe. Reparei também no inicio, a serenata ser feita de capa traçada, até ai tudo bem, no entanto, os punhos estavam à vista, algo que em muitas universidades, em praxe, se proíbe, por não se poder ver branco.

Terminando, apenas gostaria de dar os meus parabéns ao N&M por este artigo, dizendo que se tantas vezes se impões regras ridículas em praxe, porque não impor ao menos a regra de ver este filme? (sempre seria mais sensato e acima de tudo didático) - penso até que era uma lição para muitos pseudo-praxistas que acham que sabem alguma coisa de praxe ou vivências estudantis.

Melhores Cumprimentos.

Eduardo disse...

Caro Anónimo:

agradecendo a simpatia das tuas palavras, gostaria apenas de chamar a atenção para o seguinte: trata-se de um filme, e, como tal, contém aspectos realistas e aspectos fantasiados. O protagonista - como o restante elenco - não foi estudante. Admito que em algumas cenas o realizador estivesse mais preocupado com o efeito "fotográfico" do que com o rigor histórico. É o caso da capa pelos ombros na serenata - admito que é mais interessante do ponto de vista estético do que a capa traçada.

Convém ainda fazer algumas ressalvas: a capa traçada à serenata e "os brancos".

1. Não conheço nenhum grupo de antigos estudantes, por exemplo, que toque de capa traçada - todos, quase sem excepção - tocam de capas pelos ombros (eu toco sempre de capa traçada), mesmo ao ar livre.

A questão da capa traçada nas serenatas de rua começou por ter uma função prática: como imaginarás, nem todos os pais/irmãos das raparigas a quem se fazia a serenata gostavam da brincadeira... Os fadistas escondiam-se na sombra - e um colarinho branco, ainda que parcialmente visível, era um excelente ponto de mira para um balázio no meio da testa. A escuridão total era ideal para uma fuga em caso de emergência... Com o tempo, tornou-se um imperativo de praxe: concordo totalmente.

2. Os "brancos à noite" só têm fundamento para impedir que o caloiro se aperceba da presença de uma trupe e tente escapar. Mas não é só por esta razão. Ao aplicar sanção de unhas, a proibição de se verem os brancos destina-se a IMPEDIR QUE O EXECUTANTE POSSA LEVANTAR A COLHER DE PAU DEMASIADO ALTO. Se o punho se erguer mais do que um determinado nível, vêem-se os punhos da camisa, o que implica que a trupe fique desfeita. Por outro lado, no rapanço, dificulta o acesso à cabeça do caloiro - já que o executante tem os movimentos dificultados pela necessidade de manter as mãos quase sempre debaixo da capa. Mais uma vez, é uma medida de protecção do caloiro.

Estupidamente, há quem apregoe que não se podem ver brancos em situação nenhuma quando se está em praxe. Não é verdade: só não se podem ver EM PRAXE DE TRUPE.

"Dura Praxis, Sed Praxis" - a praxe é chata TAMBÉM para quem a quer exercer... isso de arregaçar as mangas para se não verem brancos mesmo de dia é de uma ignorância atroz! Nem de noite se devem arregaçar as mangas: isso é batota. A "praxis" é "dura", sim, mas para todos. Mas que é isso de adulterar o traje para dar mais jeito? :) É no que dá rasgar as capas até à gola - depois não têm como evitar que se vejam os punhos: então há que arregaçar as mangas - mas isto cabe na cabeça de alguém?

E como estas, outras parvoíces sem nexo.

Abraço!

Eduardo

Porta férrea disse...

- Nos antigos estudantes também há quem trace a capa. Tenho a impressão até que a maioria o faz. Vide Humberto Matias, Aurélio dos Reis (já falecido), Octávio Sérgio, etc.
- Essa de levar um balázio... não será forte de mais?! Numa serenata! Sinceramente, durante o meu tempo de Coimbra, não me recordo de qualquer serenata ter sido rejeitada compulsivamente! Mas a balázio?!
- Quanto a "unhas" a colher nunca podia ir a mais que a altura do ombro, o que quer dizer que só se erguia o ante braço.
Um abraço
J.Soares

Eduardo disse...

Caro Porta Férrea:

Referia-me a tempos mais recuados - transição entre séculos, ou até mesmo antes. Há relatos precisamente de situações em que o pai e os irmãos de uma jovem, por não acharem piada ao facto de a filha/irmã ser rondada por um estudante, fizeram uma espera de arma em punho, perseguindo o(s) atrevido(s) pelas ruas de Coimbra.

Talvez fosse uma excepção. Mas aconteceu.