quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Praxe - semente de democracia, igualitarismo e meritocracia



Na maré de disparates que se têm dito no debate actual sobre a Praxe Académica, impõe-se uma reflexão mais ou menos séria sobre os princípios sobre os quais assenta a Praxe.

Importa fazer desde já uma ressalva. Na presente reflexão,  entraremos em linha de conta apenas com a noção de Praxe Académica tal como foi cristalizada pela vivência académica em Coimbra, tendo sido posteriormente transmitida ao Porto e, em certa medida, a Lisboa (até aos anos 1930), a partir da formação de institutos e escolas de ensino médio e superior nestas duas cidades.

É o que designaremos, para efeitos da presente reflexão, por "praxe de matriz coimbrã" ou simplesmente "Praxe".



No presente artigo, "Praxe" será sempre usada no sentido de "conjunto de normas que regulamentam as relações entre estudantes" - nunca "gozo ao caloiro" ou "sanção".

CRÍTICAS À PRAXE

A crítica à Praxe assenta essencialmente no seguinte:

  • a Praxe promove a desigualdade entre os estudantes;
  • a Praxe assenta numa hierarquia rígida que privilegia o número de matrículas (a burrice) em detrimento do mérito;
  • a Praxe promove a violência e a coacção.


Com muita pena, teremos de concordar que assim tem sido.

Para sermos isentos, temos de admitir que o discurso e a prática dos praxistas autorizam estas observações.


Lamentavelmente, a maioria dos críticos e um número demasiadamente grande de praxistas estão convencidos de que assim é, ignorando quer os contextos históricos e sociais, quer a evolução e os mecanismos de consolidação e cristalização de práticas quotidianas em tradições. Não só ignoram como desprezam olimpicamente qualquer reflexão sobre o passado.


Quando abordamos a Praxe, é importante fugir das definições de dicionários e pseudo-dicionários, e analisar não só o conteúdo dos códigos de Praxe, mas, e acima de tudo, os relatos de antigos estudantes (como o Palito Métrico, o In Illo Tempore ou O Livro do Doutor Assis).

É igualmente importante ter em conta a massa humana que nos tempos mais recuados frequentava a Universidade. É preciso ter ainda em conta o ordenamento jurídico nacional até pelo menos meados do século XIX.

Comecemos por este último ponto.

Até às grandes reformas jurídicas promovidas pelo Liberalismo vintista, com Mouzinho da Silveira à cabeça, ao longo do chamado Antigo Regime, havia leis diferenciadas, de acordo com o estatuto social (ou Estado) a que os cidadãos pertenciam. Eram os chamados "foros". Podemos afirmar, sem risco de estarmos muito errados, que havia uma lei para ricos e outra para pobres. Se nos nossos dias existe essa percepção, em tempos passados era uma realidade.

A população universitária era constituída essencialmente por aqueles que tivessem posses para pagar as propinas: filhos de nobres, filhos de mercadores ricos ou filhos de lavradores abastados, para além de membros das ordens religiosas e militares.

Encontravam-se, assim, reunidos num mesmo espaço jovens oriundos de diferentes Estados ou Ordens sociais: Clero, Nobreza e Povo, cada qual sujeito a (ou usufruindo de) foros especiais.

Na rígida hierarquia social vigente, os diferentes elementos teriam de tratar-se de acordo com fórmulas extremamente elaboradas - de "Vossa Senhoria" a "tu", de acordo com o "degrau social" em que se encontrassem.


Os regulamentos universitários encontraram formas de esbatimento destas diferenças. Uma delas foi a introdução de um uniforme académico, que acabou por ter uma dupla função: por um lado, distinguir os universitários face à população em geral, permitindo a identificação dos que usufruíam do Foro Académico; esta intenção teve um outro efeito: produzir uma igualdade a nível horizontal, entre os estudantes, uma vez que as diferenças de nascimento e condição não se faziam sentir por via da forma de vestir.


Para além dos regulamentos institucionais e paralelamente a estes, os estudantes desenvolveram eles mesmos formas de nivelamento entre si.


Ao chegar à universidade, o estudante era "Novato", não o filho do sr. Conde ou o sobrinho do pároco. No 2.º ano, era um pé-de-banco; no 3.º, um candeeiro - e por aí adiante.



Sujeitos à mesma lei comum, os estudantes desenvolveram e vivenciaram, muito antes da lei civil, o princípio democrático da isonomia: a igualdade perante a lei.



Assim, em épocas de profundas desigualdades, os estudantes cultivaram e mantiveram uma tradição democrática e - no contexto do Antigo Regime - revolucionária.

Na "micro-sociedade" académica, todos eram iguais perante essa lei. O estudante era sujeito, por assim dizer, a um "banho" de democracia e igualdade pelo menos durante o tempo que frequentava Coimbra. Assim se compreende que a Praxe só tenha validade dentro dos limites da cidade (tal como previsto no Código da Praxe de Coimbra e no Projecto de Código da Praxe Académica do Porto de 1983): havia a consciência de que as regras aplicáveis no meio universitário eram diferentes das que se aplicavam fora.

É, portanto, falso que, na sua essência e origem, a Praxe seja anti-democrática e promova desigualdades. Muito pelo contrário. As práticas e costumes que estão na base daquilo a que actualmente se dá o nome de Praxe foram precursores na aplicação do princípio da isonomia, que, criado na democracia ateniense e enunciado pelos teóricos da Revolução Francesa, haveria de demorar mais de um século a entrar na ordem jurídica portuguesa. Repare-se, por exemplo, na atitude provocatória dos antigos estudantes ao darem o nome de "república" - em tempos de monarquia - às suas casa comuns.

É um facto que a Praxe impõe uma hierarquia rígida entre os estudantes: os do 2.º ano têm mais direitos que os do 1.º; os do 3.º mais direitos do que os do 2.º - e por aí adiante. Além disso, quem tem mais matrículas tem um grau mais alto na hierarquia.

Os detractores da Praxe dizem que esta hierarquização promove os que menos estudam - os "mais burros", portanto.

Têm, de certa forma, razão - e mais uma vez foram os praxistas quem lhes deu razão.





No entanto, estão redondamente enganados - eles e quem lhes deu razão.

Nas últimas décadas, assistiu-se à valorização do número de matrículas como critério absoluto e que se sobrepõe a qualquer outro na "mobilidade social" académica.

Na verdade, os "direitos" em Praxe vão-se conquistando à medida que se progride no curso, não com a simples acumulação de matrículas. Este critério só serve de factor de desempate e critério de precedência entre estudantes que se encontram no mesmo ano curricular.

Segundo a Praxe, só se atinge o grau de Veterano quando se usou o grelo. Isto significa que se passou de metade do curso. Por mais matrículas que tenha, um aluno a quem não tenha sido imposto o grelo não pode ser veterano. E mesmo que um aluno grelado seja veterano, não está acima de um aluno fitado que o não seja - por exemplo, num tribunal de Praxe.

O número de matrículas não é, por si só, um "mérito": acima disto está o progresso escolar do aluno.

É falso, por isso, que a Praxe promova a incompetência e a burrice.  A Praxe é, na sua essência, meritocrática.

O abuso de certas "habilidades" (como a dos veteranos por mérito académico) perverteu a lógica do sistema. De facto - e contra a própria história e tradição - a prática actual acaba por promover a incompetência, a repressão e a subordinação acriterial.

Os costumes que se vieram a condensar em "Praxe Académica", têm, por isso, fundamento em valores de democraticidade, igualitarismo e meritocracia.


Lamentavelmente, aquilo a que actualmente se assiste em muitos casos constitui uma inversão dos valores basilares: uma hierarquia imposta e mantida em nome de uma ignorância e prepotência gratuitas, ao arrepio da própria tradição que tantas vezes - e até com boas intenções - se pretende defender.

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