segunda-feira, março 03, 2014

Notas à praxis da Serenata (década de 1910)





A serenata encheu muitas páginas e muito imaginário académico ao longo dos tempos.
Desta feita, recuamos um século, para nos deliciarmos com um relato bastante pormenorizado sobre a forma como a serenata estudantil ocorria na Coimbra de início do séc. XX, sendo possível, pelo mesmo, perceber algumas diferenças de codificação da praxis associada ao acto, nomeadamente no uso da capa ou mesmo na etiqueta convencionada para o papel feminino.

Com efeito, é durante o Estado Novo, e, depois, a partir da década de 1980, que se estiliza e fixa o imaginário da codificação da serenata:


Coimbra, Costumes Académicos - Serenata, 1901

“… o carácter intimista do conteúdo da mesma aconselha e sugere que tal prática ocorra enquadrado pelo silêncio e pelas penumbras da noite. A quietude é, pois, essencial para que a mensagem que se procura transmitir seja clara entre o emissor e o destinatário. Se o «seresteiro» pretende impressionar alguém, pavoneando qualidades que possam impressionar quem o escuta, é mester que nenhuma interferência exista que possa distrair a atenção deste. Além do mais, a noite é propícia a libertar, em recato, os sentimentos provocados pelo apelo sentimental, bem como a esperada reacção por parte de quem a recebe.
A considerar ainda, nesta vertente nocturna, o carácter espontâneo e não publicitado, não consentido, que a serenata típica contém. Em boa parte das situações, o acto não é desejado pelos circunstantes da destinatária, sendo, até, em muitos casos, quando genuína, um feito presumivelmente proibido – quantas vezes revestido de perigos de integridade física, perpetrados por um qualquer pai ou outro familiar mais zeloso e preocupado com a «honra» da visada ou os sequentes «falatórios» que tal ocasião poderá despoletar no meio em que habita.” (1)



Serenata de Estudantes (Coimbra) 1901-05

Na mesma obra, que acabámos de citar, encontramos a fórmula actualmente em vigor para aquilo que se entende ser um Serenata secundum praxis, tanto para grupos mais pequenos, como para Tunas:

“…deve aproximar‑se do local em silêncio, sem se fazer anunciar, colocar‑se em posição adequada, executar as peças escolhidas sem solilóquios, por período não superior a meia hora, certificando‑se apenas de que o destinatário percebeu a sua presença, abandonando imediatamente a seguir o local da mesma forma que chegou.
Por tradição associativa à matriz da serenata académica coimbrã, deve ter a capa traçada, e os seus elementos identificáveis, a coberto das sombras, a não ser um eventual solista vocal ou a pessoa em nome ou a pedido de quem a serenata está a ser feita.
No caso – algo comum – de o destinatário ou algum dos seus circunstantes oferecer uma recordação ou vitualha, a mesma deve ser recolhida por um dos elementos, com agradecimento polido e em voz baixa, retirando‑se imediatamente para o seio do grupo, com imediata dispersão do local. O consumo ou partilha das oferendas, havendo‑as, nunca seria feita no próprio local, mas a recato e já à distância.” (2)

Mas deitemos o olhar sobre o que motiva este artigo, sobre o relato que nos é feito por R. Calado Salinas (estudante na UC entre 1911 e 1917) sobre como eram as Serenatas (pelo menos até aos anos 20):


“Não havia nada mais tipicamente académico e coimbrão, que uma serenata de estudantes.
         Aí por Maio e Junho, em noites quentes, quando as acácias floriam ainda, entre as onze e meia noite, ouvia-se, às vezes, um dedilhar de guitarra intencionalmente forte e sentimental.
Todos chegavam à janela, e ninguém acompanhava o grupo de quatro ou cinco estudantes, de andar vagaroso e solene, e de capas pendentes dos ombros.
Era da Praxe não estorvar e deixar seguir.
Iam a dizer, de paixão nascente, em simples galanteio, de quadras sentimentais entoadas no silêncio complacente da noite, ou amor tímido de algum estudante, em cumprimentos gentil, de simples madrigal.
 Havia rapazes que cantavam muito bem como o António Menano, Zé Anjos, o Agostinho Fontes, o Alexandre Rezende e o meu irmão. E havia, também, tocadores de guitarra magníficos, como o Chico Menano, o João Nepomuceno Pestana Girão, meu condiscípulo, o Duilio e o Paulo Sá.
       
  Serenata com o António Menano a cantar e o João Girão à guitarra, com um bom acompanhador à viola, era um encanto de se ouvir.
Raras vezes o cantador ou tocador eram interessados na “diligência”.
         Era sempre um amigo que, confidenciado o anceio de um grande amor, os levavam ao Peno, ao Bairro de Santa-Cruz, ou a rua discreta, longe do bulício da cidade.
A serenata era um preito discreto, em que não se cantavam mais que três ou quatro quadras, sempre intencionais e sempre lindas.
Um pouco antes da casa visada, os acordes da guitarra subiam, para avisar.
Os estudantes, com ar de quem passava, iam-se aproximando, vagarosamente, e em frente à casa paravam; a seguir, emocionada, lentamente, numa harmonia em que havia muita nitidez e muita ternura, subia a voz do cantador num convite respeitoso e tentador, para que a rapariga manifestasse que ouvia e até compreendia a intenção da homenagem apaixonada.
Não se acendiam luzes nas janelas, e às vezes, numa sempre, casa desejada, uma cortina franzia-se ligeiramente
Como que por acaso, romanticamente, um vulto destaca-se do grupo, para ser visto.
E as mais das vezes não era preciso, porque era adivinhada a sua presença.
Cantavam-se quadras em que o amor-madrigal, o amor-paixão nascente, ou amor-desespero eram o motivo principal da canção.
Noutras, cantava-se o amor-eterno, em palavras de ternura humilde, calmas e graciosas:

                Dizem que ela envelheceu
                  Mas, p’ra mim é sempre linda,
                  Há astros mortos no céu
                  E a gente vé-os ainda.
Serenata de Estudantes (Coimbra) em  1904-05.
Uma ou outra vez, em janela de casa rica, ou modesta, não se franzia a cortina airosa de um determinada janela, e então, tristemente, a serenata, ia passando, e um coração, ancioso, voltava mais triste” (3)


Imagem do documento original.
Scenas de Coimbra - uma Sereneta
 In O Gorro, Jornal dos Alumnos do Lyceu de Coimbra,
1º Anno, 1º número, 14 de Novembro 1909, p.2



Outros tempos.

O que salta logo à vista é, por exemplo, a menor rigidez na etiqueta do uso da capa (não há convenção ou norma que obrigue a traça-la), bem como o modo como a donzela deve comportar-se (do franzir discreto e recatado da cortina, de então, ao acender/apagar da luz décadas mais tarde).
Por outro lado, também percebemos que nem sempre o acto se faria “às escondidas” (segundo a narrativa, várias pessoas se “ajuntam” para assistir), fazendo-se, até, anunciar (com os acordes das guitarras a subirem de volume, um pouco antes de chegar ao local, por contraposição à chegada “de surpresa” que é hoje praticada).
Podemos, igualmente,  estabelecer a diferença da durabilidade do acto:  muitíssimo curto (3 ou 4 quadras, apenas) há 100 anos,  contra os 3 ou 4 temas inteiros, como actualmente, grosso modo, se preconiza.

Na capa do Notícias Ilustrado (ca. 1931-32),
os estudantes em Serenata,já de capa traçada.
in http://www.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fephemerajpp.files.wordpress.com%2F2010%2F04%2Fdocument-1asdfg-18.jpg%3Fw%3D360&h=ZAQHOcC7A (agradecendo o informe a João Caramalho Domingues)

A forma e codificação foram evoluindo, como se constata. Já os sentimentos, a magia e o imaginário romântico da conquista, da adulação e do mistério….tudo isso permanece, com mais ou menos rigor e seriedade.
 
SERENATA MONUMENTAL



Já noutro âmbito, temos as famosas Serenatas Monumentais, as quais obedecem a uma praxis muito simples, embora a mesma já envolta em ficções e papismos exagerados, nomeadamente quanto à obsessão de tapar os "brancos do traje", coisa que, estranhamente, nem mesmo Lamy reporta ou refere, sinal de que tal convenção não existia até há bem poucos anos (excepto o silêncio e ausência de palmas e o ter de se usar capa traçada):

"A Serenata Monumental, ao cimo das escadarias que conduzem à entrada principal da Sé Velha, o altar do Fado de Coimbra, marca o início das festas da Queima das Fitas.
Integrada nas festas da Queima, pela primeira vez em 1949, a Serenata Monumental é a consagração dos guitarristas e cantores que nela actual.
(...)
É praxe, na Serenata Monumental, não se baterem palmas e os assistentes manterem-se em silêncio até ao final. Os estudantes devem ter a capa traçada e as insígnias pessoais recolhidas.
Após a restauração das tradições (1980), voltou a ser praxe a realização, em seguida à Serenata Monumental, da Ceia dos Boémios (actualmente na cava do Departamento de Química)".(4)

Contrariamente ao que em alguns burgos se diz, não é esta actividade tradicional uma actividade de praxe ou praxística.Nunca assim foi considerada pela Tradição, apesar dos esforços de alguns em quererem praxizar todas as expressões universais, e destinadas a todo o contigente académico, estudantis.A Serenata destina-se aos estudantes finalistas, sem qualquer outra condição ou precedência. O mesmo sucede com muitas outras actividades académicas em que a Praxe tem apenas o papel de orientar o estudante trajado na forma como nelas deve trajar e estar.


Nota: Se existe a ideia de tapar os colarinhos brancos, algo que é muitas vezes consequência da capa passar por cima deles, disparate total será, contudo, arregaçar as mangas (a capa traça-se sobre o tronco e não sobre os membros), algo que vai contra a etiqueta e a Praxe, por não se tratar de um momento informal, mas formal da tradição.


(1) COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. Euedito. Porto, 2011, pp291-92
(2) Idem, p.300
(3) CALADO, R. Salinas – Memórias de um estudante de Direito, Coimbra Editora Ldª, 1942, pp.57-59
(4) LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,p. 673

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