segunda-feira, maio 12, 2014

Notas à terminologia praxística

Vamos lá agitar as águas e falar das coisas frontalmente.


Sabemos que por Praxe se deve entender o conjunto de normas que regulamentam usos e costumes da Tradição Académica. Assim, quando nos referimos a Praxe não nos referimos a tradições (e muito menos a praxes), mas ao protocolo, etiqueta e normas que as regulamentam (ver AQUI).

Sabemos que a Tradição Académica abarca um conjunto de costumes que se manifestam através várias expressões - o que não significa que toda a Tradição Académica esteja sob alçada da Praxe, pois não estão, sendo que algumas só na etiqueta ou protocolo a observar, nomeadamente no porte adequado do traje (ou seja é o indivíduo e não o evento que está), estabelecemessa ténue ligação.


Respeitante a ambos os casos, existe, por isso, uma terminologia própria que, linguística e simbolicamente, distingue o foro académico (aquilo que expressa e é próprio da natureza e praxis estudantil), seja na gíria ou no uso de denominações que reportam ao contexto e significância académicas.

 
Qual será, pois, a lógica de introduzir artificialmente termos (hierárquicos ou não) que nada têm a ver com estudantes, estudos ou qualquer ligação ao mundo estudantil?

 Qual a pertinência de introduzir na Praxe e Tradição Académicas termos e designações de outros mesteres, classes sociais, civilizações e contextos, quando o objectivo do foro académico (entendamos, neste caso, aquilo que distingue o mundo estudantil, como sucede com o traje académico - capa e batina) é precisamente não ser confundido e manter a sua identidade própria?



Qual a razão de termos centuriões, imperadores, gladiadores, condes e marqueses, etruscos ou pastores, infantes ou sertórios, grão-mestres, cardeais ou papas, carascos, aluviões ou inquisidores, eremitas, moliços ou patrões?

Se as designações da gíria estudantil são tradicionalmente ligadas ao contexto estudantil, precisamente porque ajudam a definir e circunscrever a sua identidade, o que têm a ver certas designações com o mundo estudantil?

 Do mesmo modo que introduzir traços da etnografia e folclore locais para fazer um traje académico é um contra-senso total (o traje existe, precisamente, para distinguir a condição de estudante de outros mesteres, profissões e classes - além de que a figura do estudante, por alguma razão, não existe no folclore e etnografia - ver AQUI), o mesmo não podermos dizer de certos vocábulos usados para designar eventos ou hierarquias?


Se o foro estudantil tem precisamente por objectivo distinguir-se de todas essas situações, qual a ideia de as trazer para dentro do contexto académico, pervertendo o que tradicional e logicamente se quer distinto, para garantir uma identidade única e inequívoca?

Qual o ganho e pertinência de querer rebaptizar tudo, importando, sem critério e fundamentação, aspectos que nunca tiveram nada a ver com estudantes e com a universidade?


 O que tem a hierarquia da Igreja católica a ver com a Universidade? Havia cardais e bispos como designações hierárquicas no ensino e estratificação dos estudos gerais ou não havia apenas alunos e professores?

O que tem a hierarquia militar romana ou os títulos nobiliárquicos a ver com a Universidade, com estudos ou estudantes?

 Se uma determinada academia se lembrasse de introduzir a hierarquia militar (sargentos, tenentes, majores, generais...) isso faria sentido? Dirão alguns (e bem) que não.
Pois também o não fazem outras que não pertencem ao contexto estudantil, sublinhamos nós.

E, em coerência, perguntamos, então, porque não se vestem precisamente de acordo com a cultura a que foram pescar os termos? É que, no que respeita a termos hierárquicos em Praxe, não conheço nenhum barão, senador, highlander ou quejandos que usassem traje estudantil.
Designa-se, a título de exemplo, um estudante de gladiador e usa  traje académico? Designa-se um estudante de senador e o traje não é uma toga? Designa-se um estudante de Grão-Mestre e não o vemos vestido de túnica templária ou hospitalária, ou ainda de avental maçónico?

E obviamente que já nem nos reportamos ao facto de muitas designações nem sequer terem a ver com a história da localidade a que pertence a instituição de ensino, ou daquelas que misturam, numa mesma hierarquia, um pouco de tudo (figuras romanas de classes e profissões distintas, junto com figuras do povo, figuras de títulos de ordens militares monásticas ou maçónicas, hierarquia universitária e povos bárbaros), sem qualquer organização e circunscrição geográfica e/ou social lógicas.
 

Claro está que alguns, e bem, alegarão que alguns termos tradicionais, como pastrano, são designações que originalmente não eram do meio estudantil, mas não podemos esquecer que surgem inicialmente como alcunhas atribuídas de forma espontânea e não definidas à partida como uma hierarquia ou designação formal. Foi o seu uso reiterado que os cristalizou – algo bem diferente de inventar um termo com o propósito de seriar ou promover o paradoxo de instituir uma tradição autóctonamente, passe o neologismo, artificial.


No desejo de ser diferente a todo o custo, de inventar identidades próprias, assistimos nos anos 1990, e seguintes, a uma desenfreada corrida ao exotismo, muitas vezes subsidiado pelo romantismo das grandes produções hollywoodescas ou num saudosismo históricos artificial, como pretexto para incorporar tudo o que desse uma ideia de antiguidade e grandeza, fosse buscando por figuras históricas locais, fosse pegando em nomes de civilizações perdidas ou que merecem vastas páginas nos compêndios de história.
Sei do que falo, também tenho de assumir que contribuí para a asneirada, pese embora ter ficado circunscrita à Tuna.

 Se isso tinha algo a ver com o contexto, foi algo que se ignorou olimpicamente, sobressaindo a vontade de ser mais papista que o Papa e querer dar nome a tudo, até ao mais ínfimo pormenor, multiplicando as designações hierárquicas ou dando novos nomes para dar um toque de "identidade" e de criatividade que justificassem a noção de "a nossa Tradição".

Parecendo antigo ou revestindo-se de títulos pomposos, pregava-se a imagem de algo respeitável, muito tradicional e remoto, encarregando-se o tempo de dar largas ao adágio de que "um mentira muitas vezes repetida, toma-se por verdade", resultando, hoje, que os estudantes julgam ser tal algo sério e fundamentado, mesmo se o não é.

Complicou-se o que sempre se quis simples, o que sempre deveria ser simples e assim deveria ter permanecido.
Com isso também se conseguiu ir delapidando uma noção de identidade do estudante nacional (a par com a invenção de trajes sem nexo algum) que, fosse em que lugar fosse, falava "a mesma linguagem" e era assim reconhecido por todos.

À força de querer etiquetar tudo e todos, criar gavetas e prateleiras para tudo, criou-se uma verdadeira panóplia terminológica de confusões e equívocos, onde importa mais ter uma placa ou rótulo para exibir, do que viver, de facto, a cidadania académica.

À força de querer catalogar tudo e todos no universo da praxis estudantil, cada qual usando o seu sistema de medição (e por vezes inventando "alfabetos" próprios), cada qual procurando ser o mais exótico possível...... perdeu-se a graça e espontaneidade e, acima de tudo o lado pragmático (prático) e a eficácia daquilo que a Tradição sempre promoveu: simplificar e ser inequivocamente entendido por quem está dentro (para facilitar a integração e vivência) e fora (para facilmente distinguir e identificar) do foro/contexto académico.

E não ficam de fora as muitas designações atribuídas a caloiros, como se existissem graus de caloiro.
Caloiro é a designação histórica, sucedânea de "novato" que, de igual modo, designa todo o estudante que frequenta o Ensino Superior pela 1.ª vez. Não se é Caloiro só depois de um qualquer baptismo ou cerimónia.
Uma coisa são as referências humorísticas e informais ao caloiro (besta, animal...) e outra é pretender, pateticamente, formalizar isso como hierarquia (e há tontos que metem isso em código). Tanto mais que é atentatório à dignidade quer da Praxe quer dos indivíduos (e o paradoxo absoluto para aqueles que apregoam a integração e o respeito) o uso de expressões tão humilhantes, degradantes e abjectas para algo oficial, formal e a constar d eum código.
Infelizmente, há sempre gente que, nestas coisas, faz uma prova de falta de senso absoluto e quer etiquetar tudo e mais um par de botas, quase sempre com recurso ao brejeiro (e depois queixam-se que a Praxe é mal vista).

Terminamos este artigo reconhecendo que muitos dos termos usados têm a sua graça e, alguns, alinhados com qualidade e criatividade, embora isso não invalide, de todo, o que acima reflectimos.

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