terça-feira, setembro 30, 2014

Notas às ditas "praxes solidárias"


Volta à ordem do dia esta nova moda dos actos solidários transformados em Praxe ou em praxes.

Ou seja, pela simples razão de serem arregimentados caloiros sob auspícios de uma comissão de praxe, qualquer acto passa a ser praxe.
E vai de roda que tudo o que se faz trajado é praxe, certo?
Errado!!

Um acto solidário não é Praxe, nem praxes. Nunca o foi, não é agora que passa a ser.
Uma coisa é a organização de tais iniciativas em substituição de praxes, mas é isso mesmo: em substituição, outra é chamar a isso de Praxe ou praxes.
Não é por um grupo de médicos fazer uma iniciativa solidária como tomar um banho que tal passa a ser um acto médico ou a isso se passa a chamar medicina. Também não apelidaríamos de solidariedade político-partidária se um grupo da juventude do partido X fizesse igual coisa.
Recordo, por exemplo, o caso das Tunas que, já no séc. XIX, participavam em inúmeros concertos de solidariedade, mas não consta na definição de Tuna a solidariedade. Muito menos as tunas andavam a escrever artigos para os jornais a dizerem que tinham sido solidárias. Iam e participavam. Se falassem delas, tanto melhor, caso contrário, ninguém ficava melindrado. Importava era o objectivo ser cumprido: ajudar sem esperar medalhas e louvores.
As iniciativas solidárias que se organizam são louváveis e merecem todo o nosso apoio e admiração. Isso não está sequer em causa.
Mas saiba-se distinguir as coisas.
 
Num outro patamar, questionaríamos, ainda assim, certas iniciativas ditas solidárias  que parecem mais uma operação de charme praxístico junto da opinião pública, como que a contrastar com praxes que são notícia pelas piores razões. Passamos do 80 para o 8 em que nem um nem outro são o que é suposto serem.
Não tarda e fazer voluntariado na Guiné é Praxe, só porque a malta foi de traje e õ conselho de veteranos deu uma ajuda na preparação! Tenhamos algum discernimento.
Não sei, aliás, que solidariedade genuína se publicita, quando os caloiros são, de certa forma, obrigados ou recrutados a participarem (os fins não podem, aqui, justificar os meios), precisamente porque é tal assumido como praxe. Nem isso é praxe nem solidariedade, de facto.

A solidariedade que não vem de dentro, que não é uma expressão pessoal, não passa de uma vaidade. Se ser solidário está agora na moda (e ainda bem), não se seja solidário por moda, mas por convicção; não por desafio ou para se vangloriar, antes como um desejo sincero de fazer o bem.
 
Depois, e ainda numa outra leitura, não deixo de me perguntar qual a validade moral de actos solidários que, ao fim e ao cabo, parecem mais visar a auto-promoção do que o verdadeiro altruísmo.
Quem verdadeiramente quer fazer o bem, de forma altruísta e gratuita, não se anda a gabar de tal, caso contrário não é solidariedade, de facto.
Isto remete-me, desde logo, para a bíblia e o capítulo VI de S. Mateus (e cujo conteúdo se adequa, independentemente da nossa crença religiosa ou falta dela):

 
“Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. De contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu.
Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, recompensar-te-á.


Gabar-se de ser solidário não é sê-lo, de facto, antes esperar uma recompensa pelo acto praticado – neste caso uma publicidade e exposição a dar lustro ao ego.
Como já o Pe. António Vieira dizia, “"Tanto são maiores finezas, quanto mais ocultas, porque fazer o benefício e esconder a mão, assim como é maior generosidade, assim é maior fineza."
 
Se fazemos o bem à espera de reconhecimento, não estamos a dar gratuitamente, antes a operacionalizar uma “troca comercial”: dou isto, mas espero algo em troca, ou seja, em última instância, e a pretexto de ajudar outrem, visamos ajudar-nos em causa própria. Ora, e parafraseando George Washington, não devemos ser como os pavões que estão sempre preocupados com as penas.
 
Quando vejo pessoas a fazerem questão de mostrar que são muito solidárias, não posso deixar de ver nisso hipocrisia, um acto interesseiro disfarçado de altruísmo.
Aliás, sobre isso, aconselhava veementemente a lerem as palavras de Helena Sacadura Cabral[1]:
 
"Fui educada em duas normas básicas: o trabalho deve ser pago e a solidariedade não se apregoa. Infelizmente parece que a tendência actual não é esta.
Todos nos pedem para que colaboremos gratuitamente em organizações que levam dinheiro pelo seu trabalho. No princípio da minha vida profissional era muito ingénua, aceitava e depois descobria que alguém tinha "recebido" por me ter conseguido levar aqui ou acolá. E, claro, os convites choviam.
Até que compreendi. A partir do momento em que fui confrontada com esse comportamento, tomei uma decisão que não mais abandonei. Trabalho "pro bono" em tudo o que seja estritamente solidário. O resto, ou é pago ao meu preço, ou não vou.
De nenhum deles faço alarde. Nem do que dou, nem do que me pagam. Mas em qualquer dos casos exijo reciprocidade. Ou seja, quando não cobro, peço declaração de que nada recebi. Quando cobro, passo o recibo verde respectivo. Assim evito dúvidas se terei ou não sido remunerada.
Vem este intróito a propósito dos banhos de água gelada em prol da esclerose lateral amiotrófica, para os quais alguém tentou aliciar-me. Apoiar uma causa, trabalhar por ela, contribuir materialmente, tudo me parece defensável. E pratico, sem alarde.
Fazer disso um movimento colectivo, no qual cada um se presta ao ridículo público e alardeia a sua contribuição, já não é a minha praia, como agora se diz. Além de tudo, tenho sérias dúvidas de que tal comportamento seja o mais dignificante para a instituição em causa.(…).”
 
Acho lindamente que as comissões de praxe tenham, genuinamente, o desejo de serem solidárias, e organizem iniciativas nesse sentido (especialmente para ajudar colegas com dificuldades – poismuitas vezes se apoiam pessoas que desconhecemos, tendo mais perto de si quem precisa), mas devem propor isso como tal, e não anunciarem a coisa como sendo praxe. Muito menos apresentarem tal como de participação obrigatória aos caloiros, porque se os caloiros participam, devem fazê-lo na base de um convite, de uma proposta a que se adere livre e espontaneamente, e nunca como se fosse praxe – até para que o que eles façam seja efectivamente dar, e não fazer que dão.
E digo tal porque, nas redes sociais, já temos uns quantos a reclamar por que razão as televisões não dão cobertura a essas actividades em vez de preferirem noticiar casos de abusos nas praxes.
Lá está: quando tal reclamação se faz ouvir, apenas reforça o sentimento de que, para muitos, as ditas “praxes solidárias” visam mais o mediatismo do que em fazer o bem de forma desinteressada; visam mais a publicidade do acto do que na gratuidade do mesmo.
 
A defesa da Praxe (e falo disso, porque há quem veja nestes actos solidários uma forma de limpar a imagem ou se demarcar das más práticas praxísticas) não passa por operações benévolas a mascarar ou desviar as atenções. O maior bem que se pode fazer na defesa da Praxe é acabar com os abusos e exageros que ocorrem nas mesmas, e não fazer uma iniciativa (em si louvável e merecedora de elogios) que, depois de realizada, deixa tudo como está no que concerne às más práticas.
Não que a colocação de vídeos seja mau, até porque, de certa forma, ajudará a chegar a mais gente e consciencializar as pessoas para os problemas de que o mundo padece, mas como apelo, e não como narcisita exibição de virtudes só para inglês ver. As novas tecnologias usam uma linguagem mais actual, mais próxima da sociedade tecnológica em que vivemos, mas não podemos é cair no erro de trocar a ordem das coisas e perder-se o motivo em detrimento da forma, em que se lançam desafios que depois valem por si, em que o colocar o “like” e o aceitar o “challenge” se sobrepõe, efectivamente, à intenção inicial e fundamental ou serve para anunciar “urbi et orbi” que se é um tipo muito generoso.
Aliás, deixo o seguinte para reflexão:
 
 “…Não estou a contestar os vídeos. Eles são uma excelente ideia de se transmitir uma mensagem forte e de se pedir ajuda. Com tantos gritos de ajuda espalhados pelo mundo inteiro, as pessoas só nos vão ouvir se gritarmos de uma forma diferente. E foi o que esta associação fez. O problema é que em muito sítio já se perdeu o verdadeiro significado, a mensagem que era para ser transmitida.
Muita gente fica sentada em casa e sente-se bastante solidária com o mundo porque põe uns "likes" em imagens que aparecem de cães abandonados ou de pessoas que vivem em condições deploráveis: «Coloca um like e estarás a doar com 1 euro.»... Ainda não percebi bem como estas coisas funcionam, aliás, duvido muito que funcionem. Gostava de saber quantas destas pessoas já deram uma moeda ou uma refeição ao sem abrigo que vive debaixo do prédio delas, se alguma vez se dignaram a dar os bons dias.[2]
 
Dito isto, obviamente que nos alegra e satisfaz mais ver este tipo de iniciativa do que assistirmos a certas brincadeiras e exageros. Quanto a essa questão, não restam dúvidas. Mas uma vez mais, é algo a fazer-se em substituição de praxes e não como programa de Praxe ou algo que lhe é inerente.
 
Uma vigília de oração, sei lá, em favor de um preso político por exemplo, organizada por um organismo de praxe, não faz nem da vigília nem da oração assunto de praxe; como aliás uma Missa de Finalistas não é Praxe, mas um acto religioso, inserido numa Tradição Académica (ver artigo sobre a Bênção dasPastas).
 
Venham muitas iniciativas solidárias, que tão precisas são, mas feitas como tal, e com verdadeira generosidade, e não tendo por fim a publicitação no youtube e redes sociais, para conferir à praxe uma imagem de “coisa fixe” e, pior ainda, passar a ideia de que na Praxe cabe tudo só porque se diz que cabe.

Que é óptimo ver nas notícias que os alunos universitários são abnegados e se preocupam com o bem comum, sem dúvida que sim.
Que é óptimo que os alunos promovam iniciativas que visem ajudar quem precisa, pois sem dúvida que sim e aplaudimos de pé.
Mas que tudo isso seja verdadeiramente dádiva, porque a dádiva, a solidariedade, a compaixão por quem sofre não precisa de rótulos, muito menos o da praxe.
Precisa, sim, é de gente que dá, sem ostentar bandeiras, sem megafones e sem esperar fazê-lo para as câmaras...... para que seja realmente gratuito e generoso.


Solidariedade não se mede em shares ou likes.
 
 
 
 


[1] In blogue “Fio de Prumo”, http://hsacaduracabral.blogspot.pt/2014/09/a-solidariedade-e-banhos-gelados.html [em linha], consultado a 30 de Setembro de 2014.
[2] In blogue “Indigo”, http://peacheswhish.blogspot.pt/2014/08/falsa-solidariedade.html [em linha], consultado a 30 de Setembro de 2014.

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