quinta-feira, setembro 25, 2014

Notas à Bênção das Pastas (Origens e história)

Nota prévia: este artigo vem substituir dois outros dedicados à Bênção das Pastas de Lisboa e Porto, os quais ficam, agora, incorporados neste novo texto.



A Benção das Pastas é, de há largos anos a esta parte, um dos momentos altos dos festejos das Queimas das Fitas (também denominadas de Semana Académica) um pouco por todo o país.
Trata-se de uma cerimónia religiosa inicialmente promovida e destinada a finalistas católicos a quem, com o passar do tempo, a simbologia e prestígio do acto, se foram associando os demais estudantes finalistas, fossem, ou não, crentes.
Tem-se a ideia errada de ser a Benção das Pastas uma cerimónia praxística ou costume da Praxe, quando não o é, nem nunca foi sequer.
A verdade é que a solenidade desse evento cedo cativou os estudantes, mormente a sua maior ou menor afinidade com o catolicismo, a sua maior ou menor fé, a sua relação mais ou menos próxima com a Igreja.
 A Bênção das Pastas gira em torno da Eucaristia de Acção de Graças, pelo sucesso escolar alcançado, e de súplica esperançosa num futuro profissional risonho.
Mas não foi esse lado mais religioso que despertou o interesse de muitos dos estudantes que elevaram este acto a costume e tradição académica, mas, sim, o rito de consagração, em primeiro lugar, e, depois, a bênção, propriamente dita, dentro da pompa e solenidade que, nos festejos da Queima, não existia, de facto, para assinalar o fim dos estudos – algo que nem a entrega de diplomas conseguia oferecer.
Foi, por isso, com naturalidade, que uma cada vez maior adesão se foi registando, tendo, como resposta, por parte da Igreja e associações de finalistas católicos (entidades promotoras e organizadoras), uma abertura “ecuménica” que possibilitou, com o passar dos anos, que fosse o momento especialmente acarinhado pela academia e transformado num dos pontos altos (e o de maior solenidade) dos festejos e tradições académicas.
Com efeito, a Benção das Pastas, continuando a ser uma cerimónia religiosa católica, abre-se paulatinamente a toda a academia, a todos finalistas (crentes convictos, ocasionais ou mesmo não crentes) onde os menos dados à religiosidade sentem, contudo, ser importante participar pelo simbolismo que tal acto adquirira, já, no seio da academia.
 
COIMBRA
 
O primeiro registo de tal cerimónia remonta ao ano de 1930, em Coimbra, como disso nos dá conta Alberto Lamy:
 
“Na capela da Universidade efectuavam-se a Consagração dos Quintanistas ao Sagrado Coração de Jesus (pela 1ª vez, na Sé Velha, a 25 de Maio de 1930, em cerimónia promovida pelos estudantes do CADC) e a Bênção das Pastas.
Havia missa celebrada pelo Bispo-Conde, com presença do reitor e de muitos professores.
Ante o Santíssimo exposto, um dos quintanistas, em nome dos colegas presentes, lia a fórmula de consagração.
Os quintanistas apresentavam as pastas ao Bispo-Conde que dava a bênção geral, começando depois a desfilar perante ele, ajoelhando-se a seus pés. Logo que o quintanista recebia a bênção, deixava o seu nome no Livro de Ouro das consagrações que estava no centro da Capela e se guardava no CADC.
Finalmente, o Bispo-Conde dava a Bênção do Santíssimo.
Terminadas as cerimónias, os quintanistas, com as individualidades presentes, tiravam a fotografia da praxe na escadaria central da Via Latina.
“A Bênção das Pastas é, para o estudante católico, a cerimónia mais solene do seu curso académico. Na hora da partida, depois de váriso anos de trabalho a preparar o dia de amanhã, os finalistas abeiram-se do altar, numa manifestação viril e espontânea de fé, para consagrar a Deus a sua vida e receber dele uma bênção especial para a Pasta em cujas fitas se escrevem os nomes mais queridos[1]”. [2]

 

O N&M, fiel ao seu propósito, procurou algo que documentalmente reforçasse o que o insigne investigador acima mencionava na sua obra, tendo descoberto o seguinte artigo, precisamente a dar conta da 1ª Bênção das Pastas em Coimbra (porventura a 1ª em Portugal).
 
(Gazeta de Coimbra, Ano 19º, Nº 2496,  de 27 Maio 1930, p.2)
 
Igualmente interessante é perceber que, nos primórdios desse acto solene, existia claramente uma separação entre esta cerimónia e demais festejos da Queima, sendo a participação restrita a estudantes católicos, a maioria deles ligados e inscritos nas várias associações do género (algumas delas com uma intervenção social e associativa, peso e prestígio, ao nível da associações académicas).
 Disso podemos dar conta, através do que nos relata António José Sares:

“Festa dos Quintanistas
Os quintanistas católicos celebraram a sua festa de consagração ao S.C. de Jesus, fotografando-se em seguida.
Os quintanistas não católicos também se fotografaram em grupo”.[3]

 

Ao que tudo indica, a abertura à comunidade em geral fica definitivamente reforçada a partir dos anos 60, em razão dos ventos de mudança que sopram do Concílio Vaticano II[4], passando a  Bênção das Pastas  a ser aceite e considerada como uma cerimónia integrante da tradição estudantil, a par com as demais, a qual, por exemplo no Porto, já era comumente aceite como acto que iniciava a própria Queima, como o atestam os títulos de O Comércio do Porto de 1953 e 1955 respectivamente:
"Com a benção das pastas e um sarau para proclamação dos vencedores dos «Jogos Florais» começaram ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários do Porto " (1953-05-04)
 "Com a benção das pastas e um sarau artístico para distribuição dos prémios dos «Jogos Florais», iniciaram-se ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários desta cidade" (1955-05-09)

 O amigo Zé Veloso adenda ainda o seguinte, comprovando que a inserção da Missa nos festejos da Queima é bastante recente e que passaram mais de 3 décadas até se cristalizar como Tradição Académica em Coimbra:

"Acrescento às considerações do autor do artigo que, no tempo de Gonçalo dos Reis Torgal - 1959 - a cerimónia ainda estava, de facto, fora das festas da Queima. Nesse ano, diz ele que a Benção foi a 4 de Maio e o programa da Queima começou uns 10 dias depois."


 
Benção das Pastas em Coimbra (Sé Nova) na actualidade.
 
 
 
 

LISBOA

 

No que concerne a Lisboa, António Nunes (2013) diz-nos que a 1ª ocorrência de uma Missa de Finalistas teve lugar em Lisboa, em 1926 - o que significaria que a tradição da Bênção das Patas teria origem na capital,  mas não conseguimos, até agora, uma foto de tal ou quaisquer documentos que o comprovem.

Bênção das Pastas dos Quintanistas da FDL,
Diário de Notícias de 3 de Março de 1931

 
Parece-nos, pois, que o cliché acima apresentamos será o primeiro documento fotográfico sobre a Benção das Pastas na capital, a qual se realizou em 1931 (na Igreja dos Mártires), para os "quintanistas de direito"-

A seguir, outro cliché para a bênção dos "finalistas de Direito e Medicina", no ano de 1933, precisamente o mesmo ano em que existe a 1ª referência a esta cerimónia no Porto.
 


(Ilustração, 8º Ano, Nº 6 (174), de 16 Março 1933, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Segue-se um segundo cliché, datado de 1934, com os quintanistas de Direito.

 


(Ilustração, 9º Ano, Nº 198 , de 16 Março de 1934, p.33 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Na foto de 1936, que abaixo apresentamos (esta, tirada no interior da Igreja), a respectiva legenda já não especifica os cursos envolvidos (porventura porque já os teria congregado a todos), mas apenas que os estudantes são católicos. De notar o número considerável de mulheres que, embora não envergando traje, se apresentam de pasta e fitas.

 
(Ilustração, 11º Ano, Nº 251 , de 01 Junho de 1936, p.26 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)


Apresentamos, também, mais 2 imagens da década de 1950, confirmando que esta cerimónia, a par com demais festividades da Queima das Fitas, estavam bem vivas na capital, embora apenas a Missa de Bênção das Pastas reunisse, ao que tudo indica, todos os estudantes (sendo as demais festividades organizadas no seio de cada faculdade).
 
 
Queima das Fitas FDL - Diário Popular,N.º 4523 de 10 de Maio de 1955, p.8.

Benção das Pastas de Lisboa - Diário Popular,N.º 4885 de 13 de Maio de 1956, p.6.
 

Na actualidade, a Missa de Bênção das Pastas, como sucede um pouco por todo lado, é momento de grande celebração, por vezes notícia de telejornais. Lamentavelmente, nomeadamente em Lisboa, é também um verdadeiro circo, com pouco respeito pelo momento, para além do desrespeito à praxis própria.



 

Benção das Pastas em Lisboa (Terreiro do Paço) na actualidade
(com o então Cardeal Patriarca, D. José Policarpo)



PORTO

 
Tal como sucede em Lisboa, sabemos que, na Invicta, esta cerimónia tem  lugar desde, pelo menos, 1933 (e não 1944 como inicialmente se pensava) e que, nos anos 50, se torna parte integrante do programa da Queima das Fitas portuense.
 Relata o artigo abaixo, datado de 1933, que esta cerimónia foi organizada por iniciativa da Associação dos Estudantes Católicos do Porto (em Lisboa, cremos passar-se o mesmo) e que as pastas estavam "...amontoadas numa ampla mesa, ao lado da Epístola".

Depois de abençoadas as pastas, estas foram entregues aos alunos pelos lentes da Universidade.

 


(O Comércio do Porto, de 04 Maio, de 1933, - ref. do Arquivo da UP - AN2-N83-P74)

 
Seguem-se mais 2 clichés, também referentes à Bênção das Pastas do Porto; o primeiro de 1938 e o segundo de 1939, recentemente descobertos pelo N&M.
Note-se que o uso da capa e batina ainda não é, aqui, tido como obrigatório, dado que a etiqueta académica não contemplava, ainda, este tipo de cerimonial.

 


(Ilustração, 13º Ano, Nº 298, de 16 Maio de 1938, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)


(Ilustração, 14º Ano, Nº 322, de 16 Maio de 1939, p.7 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

As imagens que se seguem, obtidas no Arquivo Digital da UP, vêm reforçar o que já expusemos, ou seja que a cerimónia da Bênção das Pastas ainda era, de certa forma, algo "à parte", só para alguns, sendo explícitas as referências a "Finalistas Católicos", menções que irão tendencialmente desaparecer, à medida que a cerimónia se abre a toda a academia (e esta a adopta igualmente como o momento mais solene dos festejos de fim de ano).

 
(O Comércio do Porto de 14 de Maio de 1945 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N261-P278)
 



(O Comércio do Porto, de 7 de Maio de 1951 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N618-P480)


(O Comércio do Porto de 10 de Maio de 1958 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N447-P400)
 


Benção das Pastas no Porto (Av. dos Aliados, com a Câmara Municipal ao fundo), na actualidade.
 
A Benção das Pastas é, actualmente, uma cerimónia que envolve milhares de pessoas, o que obrigou a que, em muitas cidades, a mesma ocorresse fora dos locais de culto, tornando "missa campal".
A esta cerimónia está associada a etiqueta da praxis que determina que o estudante se apresente rigorosamente trajado e com a sua pasta fitada (pasta da praxe com 8 fitas).
Um dos costumes que está igualmente associado a esta cerimónia é a de os pais(ou muitas vezes a “cara metade”) oferecerem ao finalista, no fim da Eucaristia, um aramo de flores, preferencialmente com as cores do curso/faculdade.
Mantém-se a bênção por parte do prelado, mas já não existe a apresentação individual dos finalistas ao bispo (ajoelhando-se para receber a bênção), nem a consagração, tal como não existe o registo (assinatura) dos finalistas em livro próprio (o tal “livro de ouro”).
Com efeito, em virtude da massificação, e tendo em conta, também, uma feição “ecuménica” (muitos vão lá, mas sem fé sequer, apenas e só pela cerimónia – a lembrar alguns casamentos de véu e grinalda), a cerimónia aligeirou-se, continuando, ainda assim, a ter a Eucaristia por centro e cerne do acto.


 
Benção das Pastas em Viseu (largo da Sé) presidida por D. António Marto
(actualmente bispo de Leiria-Fátima)

 




Poderá interessar ao leitor o seguinte artigo (AQUI) dedicado à ocorrência da Benção dasBastas nas Escolas do Magistério Primário (tradição iniciada nos anos 50) e que, no caso de Lisboa, explicam o porquê dessa "peregrina" tonteria de usar pastas com dezenas de fitas (em vez das 8, como manda a tradição) e as mesmas apresentarem desenhos e monogramas.



 



[1] Estudos. Juklho de 1948, Ano XXVI (facs. VI-VII), nº 268-269, pág. 390-391.
[2] LAMY, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra, 1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 671-672
[3] SOARES, António José – Saudades de Coimbra, 1917-1933 (Tomo III). Almedina. Coimbra, 1985, p. 5 do ano de 1932.
[4] O Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII, que o inaugurou no dia 11 de outubro de 1962. O Concílio só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI.

Sem comentários: