sexta-feira, julho 03, 2015

Notas ao Rasganço

O rasganço é um ritual que, ao longo de décadas, poucas alterações sofreu.
Parece ter origens em finais do séc. XIX inícios do XX, sem certezas absolutas.
Surgirá, estamos em crer, em razão, também, do "ódio de estimação" que os alunos tinham pelo uniforme estudantil, de uso obrigatório, e para quem ele constituía, na época, mais um símbolo de submissão às normas disciplinares do que identificação do foro privativo.
Com o rasgar do traje, terminava o tempo das liberdades cerceadas e os jovens alunos podiam, finalmente, na sua perspectiva, serem livres e emanciparem-se definitivamente como homens.

Inicialmente, tinha lugar no último dia de aulas e os alunos mais novos ficavam à espera dos alunos do 5º ano para lhes esfrangalharem as roupas.
Era, de certo modo, o exorcizar de anos de "duras penas", um grito de libertação do jugo dos estudos, o fim das sebentas, dos exames, das orais, das farras perdidas para ficar em casa a "marrar"..............
Nessa altura, era todo o traje, capa incluída, que eram feitos em farrapos.
Nessa altura, o rasgado valia-se da capa de algum caloiro ou colega mais novo, senão ia mesmo a correr em pelota até casa, para gáudio das sopeiras, tricanas e população que, com os estudantes em festa, dava vivas ao finalista, entre risos puritanos e gargalhadas desbragadas aos fugitivos nudistas.

Com o tempo, o ritual "civiliza-se".
Essencialmente partir do pós-guerra, o rasganço passa a ocorrer já não no último dia de aulas, o famoso "dia do ponto" (marcado, tradicionalmente, pelas latadas), mas após o último acto de formatura, ou seja, e como hoje se observa, aquando do último resultado afixado nas pautas que atestava o fim do curso.
Entretanto, a capa deixou de ser alvo dos ataques destrutivos, passando a ficar a salvo do rasganço e passando a significar, romanticamente, lembrança dos tempos de estudante. O resto, ia tudo ao ar!

Outra evolução que ocorreu foi que este ritual do rasganço passou para o foro privativo, já não como acto público, espontâneo e por vontade de terceiros, mas em data escolhida pelo próprio estudante, convidando para o ritual as pessoas chegadas, os colegas (podendo ter mais ou menos visibilidade na via pública, conforme desejo do rasgado).
A capa, que então era poupada, servia para cobrir o pobre rapaz, evitando infringir a lei respeitante ao decoro na via pública.

Actualmente, algumas partes do traje também já não são retiradas, mas permanecem no rasgado, a modos de gozação, de brincadeira: os punhos da camisa e o colarinho, bem como a gravata ou laço (por vezes, meia gravata apenas).
Mais recentemente ainda, as mulheres entraram no rito, havendo, já, vários registos de rasganços femininos, embora, por norma, com maior recato na hora de passar a tesoura (mesmo se, tradicionalmente, o rasganço se fizesse sem recurso a tal utensílio), proibida de ad libitum à roupa interior.

 in revista Rua Larga, nº 53, de 31 Maio de 1961, pp.1334-135

In Coimbra, o Tempo De História, de Sofia Rosário.
Coimbra, Dpt. Gráfico da AAC, Março de 1989