segunda-feira, junho 23, 2014

Notas à Evolução do Traje Académico e ao Mito Igualizador



Sabemos que falar de Tradições Académicas e/ou de Praxe é muitas vezes tropeçarmos num conjunto apreciável de ficções, mitos e de equívocos. Uns são facilmente desmontáveis com 2 dedos de pesquisa e algum espírito crítico, já outros estão de tal forma enraizados, e reiterados no tempo, que se lhes perdeu o rasto – assumindo-se como factos que se repetem “ad nauseum” (mesmo se os replicadores não conseguem, igualmente, justificá-los).

Um desses mitos prende-se, precisamente, com a ideia de que o traje académico foi implementado para nivelar ou esbater as diferenças sociais dos estudantes.

É um argumento recorrente que encontramos impresso no discurso de muitos estudantes e até mesmo de códigos de praxe; um argumento que se transformou em conceito e dogma.

 Já em alguns artigos tínhamos feito referência à falácia de tal explicação, apontando que esse argumento era, antes de mais, uma questão encontrada “a posteriori”, para justificar as virtudes de usar o traje, como meio propagandístico de levar os estudantes a envergarem o uniforme estudantil, como forma de afirmar a sua identidade (nomeadamente após a abolição do porte obrigatório).

Obviamente que, como já muitas vezes referimos, a paridade resultante do uso de um uniforme transversal a uma academia é um facto mais ou menos assente (não podemos, ainda assim, fazer esquecer que a qualidade da confecção, por si só, já determina a bolsa do estudante, a que acresce o gasto feito em “enfeites” e “apliques”, vulgo emblemas, pins e apêndices carnavalescos como as madeirinhas, por exemplo).

Mas uma coisa é a consequência outra é o propósito. Uma coisa é definir-se um uniforme para identificar a corporação académica e outra é justificar a existência do mesmo por motivos de igualdade social. Na verdade, qualquer uniforme serve para distinguir a identidade do grupo, antes de mais, do que propriamente para nivelar os seus membros.

O que não podemos é cair no facilitismo de pegar num argumento que não passa de uma evidência que ocorre a jusante e transformar isso no motivo que justifica, a montante, a criação de um uniforme estudantil.

Com efeito, em momento algum encontramos como motivo da criação do traje estudantil (seja o talar, seja a “abatina” ou, depois, a sua versão burguesa – que se fixará no actual modelo que conhecemos por “capa e batina”) o argumento nivelador tendo por objectivo acabar esteticamente com as diferenças e proveniências sociais dos estudantes. Encontramo-lo, sim, como argumento para enaltecer as suas virtudes (já disso tínhamos dado conta, até, na publicação de uma imagem de um artigo jornalístico: ver AQUI).

Como sabemos, a universidade recebeu os seus primeiros estatutos em 1309, sem qualquer menção sobre os trajes docentes e discentes. Com efeito, porque frequentada pelos membros do clero, cada aluno se apresentava nas aulas com o vestuário próprio da sua condição, hierarquia e ordem a que pertencia.

De todas as revisões estatutárias que se foram seguindo, e no que concerne à indumentária, todas as recomendações visam, acima de tudo, o apelo à sobriedade e ao evitar de excessos, nomeadamente em sinais exteriores de riqueza ou estatuto, limitando-se algumas cores mais exuberantes, os exageros de folhos, entre outros.

Como sabemos, com a abertura da universidade à burguesia, os civis procuram vestir-se como era o costume, ou seja como os seus colegas clérigos, pelo menos tentam fazê-lo de forma aproximada. Naturalmente, isso veio trazer ainda maior diversidade, tendo em conta que a Universidade nunca deixou de ser permeável ao mundo que a rodeava, mormente a sua natureza ortodoxa quanto a costumes e modas. Subtil e paulatinamente, a estética burguesa também será adoptada na indumentária académica.
Assim, ao longo de séculos, o vestuário que se podia ver na Universidade era, de certo modo, diversificado, conforme a maior ou menor permissividade dos decretos reitorais ou estatutos ratificados pelo rei, assim como pelo estatuto profissional ou tecido social a que pertenciam os lentes e alunos.

Embora existisse um modelo mais ou menos identificável (até porque na sociedade todos os demais tinham uma forma de vestir totalmente distinta, ou mais pobre, no caso do povo, ou equiparada, ou mesmo mais rica, no caso do alto clero e nobreza), nele se estampavam inúmeras cambiantes e variantes, desde os berloques, aos adornos, tecidos, cores, sapatos, chapéus, etc., que se operavam de forma mais ou menos discreta.

Disso nos dá conta Alberto Sousa Lamy, naquele que é considerado, até á data, o maior e mais profundo estudo sobre as Tradições Académicas e a Praxe na UC:

 

“ Primitivamente, os estudantes da Universidade de Coimbra não eram obrigados a trajar um uniforme próprio, exclusivo.
Os antigos estatutos não impuseram o uso de qualquer uniforme, mas somente regras rígidas respeitantes ao vestuário dos académicos, procurando evitar certos luxos.
A Ordenança para os estudantes de Coimbra, de D. João II, de 14 de Janeiro de 1539, determinou quanto ao trajos que os académicos não podiam “trazer barras, nem debruns de pano em vestido algum”; não podiam “trazer vestido algum de pano frisado”; não podiam “trazer barretes doutra feição senão redondos”; “os pelotes e aljubetas que houveram de trazer, sejam de comprido três dedos abaixo do joelho ao menos”; não podiam “trazer algumas de capelo”, mas somente “lobas abertas ou cerradas, ou mantéus sem capelo”; não podiam trazer “golpes nem entralhos nas calças”; nem podiam trazer “lavor branco, nem de cor alguma em camisas, nem lenços”.

O estudante “que trouxer qualquer das cousas acima defesas, pela primeira vez perderá ou vestido ou cousas que contra esta defesa trouxer e com elas for achado. E por a segunda vez incorrerá na dita perda de perdimento do vestido e mais cousas, e mais perderá seis meses de curso do tempo que tiver cursado. E sendo outra vez compreendido em cada uma das sobreditas cousas, haverá as mesmas penas, e além delas pagará dois mil reais para a arca da Universidade[1]

Os Estatutos Velhos ou Oitavos Estatutos, de 1598, confirmados por D. João IV e que prevaleceram até á Reforma Pombalina (1772), dispunham que “os estudantes andarão honestamente vestidos, sem seda alguma: mas poderão trazer chapéus e barretes forrados, e colares[2] de mantéus e guarnições de sotainas por dentro: e nas camisas não trarão abanos, senão colares chãos sem feitios de rendas, nem bicos, nem transinhas, nem de outras guarnições semelhantes, sob pena de dois mil reis, pagos da cadeia, a metade para a Confraria, e a outra para quem o acusar. E não trarão em nenhum vestido de sotaina, calças ou pelote, as cores aqui declaradas: amarelo, vermelho, encarnado, verde, laranjado, sob pena de perderem os ditos vestidos, a metade para a Capela e outra para o meirinho, ou guarda das Escolas, qual o primeiro a acusar. E porém debaixo das sotainas poderão trazer gibões ou jaquetas de pano de cores, para sua saúde: contanto que os colares não sejam mais altos que os das sotainas, nem as mangas mais compridas. E poderão outros sim, debaixo de botas ou borzeguins, trazer meias calças de cores bem cobertas: e em casa, ou pelas ruas, onde pousarem, poderão trazer roupões de cores, contanto que não sejam acima proibidas”.

Mais determinavam os Estatutos Velhos que os estudantes “não poderão trazer barretes de outra feição, senão redondo ou de cantos: nem carapuças, senão os que trouxerem dó, no tempo limitado, ou pelas pessoas, que o podem trazer” e que “os mantéus que houverem de trazer serão compridos, ao menos até ao artelho[3]”.

Os académicos “não trarão capas de capelo cerrado, e trarão mantéus de colar, ou de capelo abertos. Porém os criados dos estudantes poderão ir ouvir missa às Escolas com pelotes e farragoulos, e chapéus, e colares de abanos nas camisas, chãos, que não passem dois dedos. E os estudantes pobres poderão trazer o mesmo trajo: tirando os colares das camisas de abanos (…)”[4]

 Como é fácil observar, não apenas as proibições visam evitar excessos, como deixam, contudo, uma muito ampla margem de manobra e possibilidades no vestuário, o que, desde logo, contraria a tese de um traje igualitário.
Mais ainda quando podemos perfeitamente observar a diferenciação clara e determinada estatutariamente, ao modo de vestir dos estudantes pobres ou dos criados dos estudantes (muitos deles também estudantes).
 

O nivelamento social de um suposto uniforme transversal e que esbatesse quaisquer sinais exteriores de pertença e riqueza social não existiam, muito pelo contrário se fazia precisamente questão nessa diferenciação.


 
Se atentarmos à figura dos mantéistas e capigorrones que encontramos na vizinha Espanha (extensível também a Portugal, como acima acabámos de verificar), fica claro que o argumento igualizador não encontra quaisquer fundamentos até em épocas mais recuadas (a partir de meados do séc. XV).

A loba
Com efeito,

"Sendo o manteo o hábito mais comum do escolar, ficava fora das possibilidades dos menos favorecidos, pelo elevado custo de confecção. Por autorização dos reitores, estes alunos eram admitidos aos gerais ou às aulas com um hábito ligeiramente diferente: o ferreruelo (em vez do manteo), uma capa de tecido menos nobre e mais curta; e a gorra, em vez do bonete: capa y gorra – capigorrista.

 [Os gorrones eram os criados que assistiam gratuitamente às aulas com os seus amos (os manteístas), distinguindo se pela capa e gorra.]
(...)
O manteo
Como vimos, alguns manteístas, forçados pela necessidade, entravam também ao serviço de outros estudantes. Contudo, não estavam autorizados a exercer a mendicidade; além do mais, vestidos de manteo, ninguém lhes «dava sopa»: a solução passou por adoptarem também a capa e a gorra, para mais facilmente poderem mendigar nas ruas. Além disso, pôr o manteo e o bonete no prego sempre rendia alguns cobres... Contudo, mesmo quando deixavam de ter necessidade de mendigar, dificilmente voltavam a envergar o manteo, dado que descobriam que capa y gorra eram muito mais práticas de usar do que o comprido e pesado hábito escolar oficial. O número de alunos que se apresentavam de capa y gorra nas aulas começou a crescer de tal forma que, em algumas universidades, os reitores e/ou os juízes eclesiásticos começaram a exigir atestados de indigência para concederem as autorizações e acabarem com a «praga». Até mesmo os alunos que não tinham propriamente necessidade de mendigar se deixavam seduzir pelo lado risonho e pelos atractivos de uma vida semi marginal, semi poética, à margem dos convencionalismos sociais, folgazona, despreocupada: libertos da necessidade de angariar a comida e o tecto, gozavam dos aspectos positivos, sem sentirem os apertos da fome e do frio."[5]

 


Como se pode constatar, o que ocorria, nesses casos, é que os estudantes mais abastados, os manteístas, procuravam fugir à rigidez dos regulamentos disciplinares, disfarçando-se ou tornando-se “gorrones” para, assim, gozarem de maior liberdade e poderem usufruir de mais espaço de manobra.

Como facilmente se depreende, não existia igualdade nas roupagens, as quais eram determinadas quer pelo estatuto social, quer pela bolsa ou mesmo pelo desejo de aventura dos estudantes.




Como a obra “QVID TVNAE?” no lo explica (p.49), o foro estudantil dividia-se em 2 grupos, os de condição superior, que podiam usar manteo + loba ou sotaina; bonete hábito da ordem ou uniforme militar e, ainda, a famosa beca, conforme a sua proveniência (e eram apelidados de manteístas ou colegiales, conforme o tipo de habitação: própria/arrendada ou em colégios), depois, os de estatuto inferior , cuja roupagem era o manteo + loba ou sotaina e bonete (se fossem serviçais de alunos colegiales – eram os chamados férmulos ou familiares), ou capa e gorro (se fossem serviçais de manteístas – e que eram conhecidos por sopistas, gorrones, capigorros, capigorrones ou capigorristas).


Assim:
 

 

“É sempre perigoso proceder‑se a uma análise do passado, partindo dos pressupostos do presente.

No caso do traje, é errado supor que desde sempre tenha existido, como hoje (em teoria, pelo menos), uma espécie de uniforme nivelador das diferenças sociais entre alunos (mesmo quando as universidades passaram a legislar o uso e o modelo de vestuário, tais posturas destinavam‑se a distinguir aqueles que eram abrangidos pelo foro universitário da restante população). Ao contrário do que seríamos levados a pensar, em Espanha nem todos os alunos dos estudos gerais/universidades usavam o mesmo traje, pretensamente identificativo da corporação estudantil, e o mesmo se passava em Portugal.


 
 

E haveria uma classe estudantil homogénea? Ao que tudo indica, não.
Segundo Soror Águeda María Rodríguez Cruz[6];

 
Houve épocas, sobretudo nos primeiros séculos, em que se matriculavam também pessoas alheias ao estudo, com vista apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos, donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este abuso[7]

 Para percebermos melhor o contexto de como surgiu tal falácia do argumento igualizador, nada como aqui trazer o que sobre isso disse o maior especialista que temos sobre trajes e protocolo académicos:

 “O estudante António Manuel da Cunha Belém, num romance editado ao longo de 1858 em folhetins, dedicou um capítulo à chamada “abatina” ou “batina” dos estudantes. Não se coibiu de elucidar que fora do horário escolar os estudantes trocavam o hábito talar pelo traje civil de tipo equitação, com jaleca “à espanhola”, atitude muito praticada pelos militares portugueses. Discorrendo sobre o uniforme escolar, o literato confirma o abandono espontâneo da antiga loba e a substituição generalizada pela “frock coat”, uma sobrecasaca burguesa preta, integralmente fechada na frente com carcela de botões de duraque.
(…)
Na óptica dos estudantes abolicionistas, o hábito talar não era vivido nem sentido como um traje “pitoresco” ou estruturante da identidade académica que se reclamava defensora do livre arbítrio.
De acordo com o Regulamento da Polícia Académica, o traje era definido como um instrumento de identificação imediata do corpo estudantil, através do qual a Polícia Académica sinalizava os alunos nos vários edifícios da UC, nas ruas da cidade e em espaços interditos (casas de jogo, bordéis).
(…)


 

A construção mental idealizada que atribui ao traje estudantil uma função igualitária no interior da sociedade tradicional académica é bastante tardia. Será preciso aguardar pela publicação das Memórias do Mata-Carochas, em 1906, da autoria do antigo estudante de Direito Henrique António Antão de Vasconcellos (1842-1915), para se assistir à primeira elaboração escrita do igualitarismo

Radicado no Rio de Janeiro, e visivelmente emocionado pela leitura do livro do também antigo estudante José Trindade Coelho, In Illo Tempore (1902), Antão de Vasconcellos pronuncia-se a favor da manutenção do traje académico.

Informa que os estudantes do ensino superior brasileiro não tinham uniformes, facto que lamenta, e conclui com a tirada igualitarista que se encontrava amplamente difundida entre as elites brasileiras a propósito dos uniformes escolares (ensino primário e secundário)"[8]





 

Serve de base ao argumento nivelador o que escreveu Antão de Vasconcelos e que servirá de pedra angular para os defensores do igualitarismo:
“Ali não se distingue o pobre do rico, o fidalgo do plebeu; a capa e batina, feita do mesmo molde, do mesmo pano, que é obrigatório, nivela-os a todos”[9]

Convém aqui referir alguns aspectos que António Nunes salienta em nota de rodapé:

1º. Que a obra “O Mata-Carochas” contém inexactidões, cuja leitura requer confronto de factos;
2º. Que a partir da abolição da capa e batina em Outubro de 1910, Antão de Vasconcellos será repetidamente invocado em Coimbra, bem como noutros meios académicos portugueses, para legitimar a necessidade e função cultural do traje académico que, à luz deste argumento mitográfico, serviria para instaurar a igualdade entre os respectivos aderentes.  

Como facilmente depreendemos, pegou-se num argumento que visava encontrar virtudes no uniforme estudantil, com vista à sua defesa e publicitação, o qual foi transformado e adoptado como a “verdadeira” razão da existência e legitimidade do traje académico.

 
Mas continuemos com o que nos diz António Nunes:


O hábito talar possibilitava aos archeiros da polícia académica a identificação imediata dos estudantes e sua condução à presença do Reitor, distinguindo sem ambiguidades os escolares dos lentes, dos funcionários e dos demais habitantes da cidade.

Os editais reitorais redigidos em tom paternalista e moralizador funcionavam como mecanismo de controlo preventivo e repressivo. Para que todo este dispositivo funcionasse, também os archeiros da polícia académica envergavam diariamente um pequeno uniforme militar, actuando num território demarcado (edifícios universitários, Bairro latino e espaços intra-muralhas) que depois de 1910 passaria a ser controlado por bandos de escolares ou trupes da praxe académica.
Bem elucidativa dos equívocos circulantes foi uma multidunária assembleia magna realizada no Teatro Académico em 21 de novembro de 1860, donde saiu um abaixo-assinado para entrega em mão ao Rei D. Pedro V.
Vindo do Porto, o chefe de estado entrou solenemente em Coimbra no dia 2 de novembro de 1860, com o fito de presidir à abertura solene da UC. Uma comissão estudantil entregou ao monarca um pedido de abolição do porte obrigatório da “capa e batina, traje jesuístico e também inquisitorial” e de supressão do “foro académico”.
Os estudantes continuavam a confundir o regulamento disciplinar de 1839 com o antigo juízo privativo (conservatória) que fora extinto em 1834[10].
Vendo no hábito talar um instrumento de manutenção da ordem na sociedade académica, e devidamente inteirado da não existência do antigo foro académico, o Rei não atendeu os pedidos exaltados dos estudantes.”[11]

 
 
Como é possível verificar, os estudantes pró-abolicionistas do traje talar – e que reivindicavam um novo traje mais “progressista” – em momento algum alegam que pretendem um novo traje que seja igualizador. Aliás esse argumento nunca é utilizado. Ao invés, fala-se, isso sim, de uma maior liberdade estética, movida por um claro anti-clericalismo[12] e um divórcio total entre a comunidade estudantil e sucessivas medidas repressivas por parte da reitoria da UC, levando a posições extremadas.

 
 
A partir de 1863, dá-se, de facto, o início da mudança. Vicente Ferrer Neto Paiva toma posse como reitor da UC (10 de Agosto), sendo um lente da ala liberal progressista. Estava a par (pelos contactos académicos que mantinha com instituições espanholas) da abolição do traje estudantil em Espanha (1834) e adopção da toga judiciária como traje nacional para bacharéis, doutores e reitores, operada em 1850.



Após auscultar várias comissões de estudantes, que pediam abolição do traje talar, acabou por permitir, por edital de 10 de Outubro de 1863, o uso de botas, calças compridas, colete e gravatas pretas, e implicitamente das sobrecasacas aos docentes e discentes da UC e do Liceu de Coimbra.

As antigas roupagens, essas, ficavam apenas para actos solenes.
 



O reitor Vicente Ferrer não estava, contudo, a chancelar a oficialização de um novo traje, porque formalmente continuava a ser o traje talar o traje corporativo em vigor, contudo abria uma porta que jamais se voltaria a fechar, criando o precedente para a transição da indumentária académica, nomeadamente do corpo discente.
Era uma forma de acalmar a contestação, de criar uma trégua na muita abalada ordem social que se vivia dentro da cidade universitária, pois o reitor não confiava nos estudantes, muitos deles conhecidos pelas suas posições extremistas.

 Regressando à obra que nos serve de referência para o artigo[13]:

 



“A 14 de Outubro a casa reitoral fazia sair novo edital,

proibindo expressamente os archeiros da polícia académica de continuarem a receber gratificações dos estudantes para fecharem os olhos às transgressões vestimentárias.

Insatisfeitos, os estudantes pró-abolicionistas realizaram uma assembleia-geral em 20 de outubro onde reclamavam a extinção da polícia académica e do uniforme escolar. Manuel Chaves e Castro, José Falcão, José da Cunha Sampaio e Fernando Rocha foram designados para felicitar o reitor recém-empossado e entregar-lhe uma petição escrita.

Louvava-se o espírito liberal do prelado, pedia-se a abolição das “informações de costumes de vida”, a abertura da Biblioteca Joanina, o fim da polícia e a erradicação do “hábito tão escuro e opressor”.
Curiosamente, a petição não propugnava pela abolição liminar do uniforme, mas pela sua substituição por outro que reflectisse as conquistas do século.
A retórica cultivada pelos signatários do texto limitava-se a continuar as assimilações anticlericais, laicistas e de hostilidade ao absolutismo, requentadas nos anos mais recentes e radicalizadas pelos membros da Sociedade do Raio na sua aproximação ao ideário carbonário.
O uniforme académico era condenado em bloco, sem que o ultra-romantismo campeante deixasse escorregar uma palavra de apreço pela peça mais considerada, a capa talar.”[14]

 


A moda em voga na classe burguesa e alta sociedade,
em finais do séc. XIX
A. Nunes chama a nossa atenção para o caricato da incongruência entre os argumentos anti-clericais, laicistas contra o hábito talar e a polícia académica, reclamando modernidade e progresso, mas contudo cultivando actos e práticas totalmente e opostas a tais ideias, como o caso dos violentos rituais a caloiros, os roubos, espancamentos, e outros variadíssimos distúrbios, protagonizados pelos estudantes, assim como outras festividades arcaicas que em nada se distinguiam das que ocorriam nos meios rurais, mostrando o lado boçal, primário e bárbaro que na verdade caracterizava muitas das práticas estudantis. Lembra, e bem, que os periódicos da época davam igual eco a tal paradoxo, pois que a “revivescência do “chavari das latas” ou “caçoadas do ponto” nas noites após o encerramento das aulas não traduziam o vanguardismo cultural propalado pelos estudantes[15].

 
Acrescentamos, ainda, um outro dado:


“Conforme se tentou demonstrar na primeira parte deste estudo, na Coimbra do liberalismo,
coabitaram facções estudantis que reclamaram a abolição do hábito talar, enquanto que outras pugnaram mais moderadamente pela sua simplificação ou até substituição por uma farda militar. A partir do Regulamento da Polícia Académica de 1839, os estudantes com estatuto militar conseguiram que as suas fardas fossem equiparadas ao hábito talar.

(...) Traduzia também o apreço do governo central pelos batalhões académicos que haviam combatido em prol da causa liberal e o reconhecimento público pela ordem e disciplina militares.” [16]


 
Mesmo depois da transição da “abatina” para o modelo burguês, os estudantes militares continuaram a poder usar a sua farda à qual, muitas vezes, colocam, por cima, a capa negra.

Sendo a equiparação entre capa e batina e uniforme militar um facto, podemos desde logo perceber que a igualização não era, de todo, uma realidade possível, até porque, quanto mais não fosse, no que concerne aos militares, estes continuavam a usar, por exemplo, acessórios diferenciados conforme o seu posto
 
No virar do século (do XIX para o XX), as ambiguidades são enormes, e toda esta efervescência é ainda mais adensada pela inoperância das autoridades académicas, presas ainda à sua ortodoxia, ultrapassadas, de facto, pelos acontecimentos sociais da época e incapazes de promover o devido “upgrade” vestimentário (fosse para discentes ou para docentes).

É costume verem-se alguns estudantes de cartola, embora a irreverência seja, até, andar em cabelo, e os coletes, por exemplo, ostentam vários feitios e cores.
Em 15 de Outubro de 1898, o periódico "O Conimbricense" informava que “a calça nem sempre é preta. A gravata, umas vezes encarnada outras branca, e, só por esquecimento, é que ela é preta… A capa é usada com frequência dobrada e deitada sobre um dos ombros, trazendo-a muitas vezes na mão. E aqueles que querem usar bengala fazem-no…”.

O traje estudantil (“abatina"[17]) é mal-amado pelos estudantes da época que olham para o mesmo como símbolo retrógrado numa sociedade progressista e moderna.
Há, por isso, um relaxar dos costumes, também movidos por ímpetos irreverentes de contestação.
Em Março de 1907, em pleno eclodir da greve académica que viria a alastrar a todo o país, um lente propôs, no Conselho de Decanos, “que se tratasse de obter, no mais curto prazo possível, a abolição da capa e batina, visto ser esse trajo uma das causas das irregularidades dos estudantes, havendo tanto mais razão para a abolir, quanto já não é usada a rigor. “

 
Olhemos, agora às peças comuns do denominado “pequeno uniforme” académico[18] para docentes e discentes[19], a partir de 1863:


·        Sapatos pretos comuns ou botinas pretas de couro (nos quais se viria a incluir como sinónimo de maior solenidade o sapato masculino estilo Oxford, com biqueira e abotoado sobre o peito do pé com cordão estreito. O calçado académico masculino de porte corrente, adoptado após a revolução de 1820 era o sapato preto de couro estilo império (ou de chinelo), abotoado sobre o peito do pé com uma fita preta de seda);
·        Meias pretas (usando-se, até á revolução de 1910, meias pretas até à altura do joelho, para se evitar que a canela fosse avistada, quando as pernas se cruzassem na posição sentada);
·        Calças compridas pretas, de abertura de alçapão na sua fase inicial, com ulterior consagração da braguilha de carcela interna;
·        Colete preto de carcela alta, munido de seis botões médios, forrados, e decotes em V (já os estudantes clérigos usaram, até 1912, colete preto subido até ao pescoço, rematado por volta branca);
·        Opção facultativa pelo plastron ou laçarote preto, cujas pontas se deveriam usar pro dentro da “frock-coat” (sobrecasaca);
·        Gorro preto tubular, de porte facultativo, de uso comum aos lentes[20], tendo caído em desuso no séc. XIX (o chapéu próprio desta veste era o tricórnio de feltro preto);
·        “Batina” preta de sarja, cintada, colarinho raso, com mangas e costas talhadas no feitio da “frock-coat” vitoriana da época, e carcela dianteira integralmente fechada com uma fileira de botõezinhos planos forrados de tecido. Bainha inferior quase à meia perna, sendo ligeiramente mais descida para os lentes;
·        Capa singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os estudantes simpatizantes dos rasgões[21], colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de cordão de borlas ou de cordãozinho simples.

 
E voltamos a pegar ipsis verbis, ainda situados na segunda metade do séc. XIX:





Diferentemente do hábito talar histórico, o pequeno uniforme marca o triunfo das virtudes burguesas oitocentistas: ordem, trabalho, poupança, austeridade, laicização da instrução pública, normalização dos costumes de vida e crescente estandardização da confecção têxtil.
(…)
Abandona-se a confecção à base de tecidos “nobres” como o cetim, a seda e o damasco. À luz do espírito de poupança, e contenção dos gestos, os amplos panejamentos, as linhas evasés, os bordados e os tecidos de luxo desaparecem. Impera um figurino vincadamente geométrico (rational dress), onde não há lugar para excessos de alfaiataria. Se dantes eram admitidos o  preto, o pardo e o cinza, agora o preto é a única cor autorizada .
A máquina de costura torna-se um preciso auxiliar do processo de padronização.
A capa e batina da segunda metade de oitocentos afirma-se reservada à construção da identidade masculina, progressivamente marcada pelos mesmos critérios que permitem caracterizar a farda corporativa.
(…)
A indumentária masculina manteve-se relativamente estável até À sua abolição em 23 de outubro de 1910. Antes de 1912, não se registam ingressos femininos no claustro docente.


As primeiras alunas haviam chegado à UC em 1891, mas a reitoria optou por dispensar as estudantes do porte do uniforme escolar". [22]


No que respeita à “batina/frock-coat”, na passagem para a década de 1870 os estudantes abandonaram a carcela exterior de botõezinhos, passando a usar quase até ao período do Ultimato Inglês de 1891 carcela interna e colarinho adornado de gola de orelhinhas, tipo gabardine. A toda a volta das bainhas, sobressaía uma orla em voga na indumentária civil masculina.
 

 

Entre o Ultimato e a Greve Académica de 1907, a “batina” perde novamente a gola de orelhinhas, acentuando-se os actos provocatórios tendentes a andar desabotoado. A Greve de 1907 hiperboliza a moda da abertura frontal da “batina”, com lapelas a dobrar sobre o peito em V e o recurso aos adornos de cetim, numa época em que as golas e lapelas em cetim eram símbolo de distinção social dos novos-ricos.

 
A capa passa a usar-se enrolada no colarinho ou deitada no braço, gesto provocatório que acentua a distância em relação à capa dos clérigos e seminaristas. Signo visual da identidade dos estudantes republicanos, livre-pensadores e intransigentes, a sobrecasaca desabotoada com a capa no braço sujeitava os resíduos do traje corporativo a uma espécie de acto de degradação final.

A população conimbricense e portuguesa não compreendia o fundamento deste “malaise”, numa conjuntura marcada por forte reapropriação da capa e batina nos liceus distritais e nas emergentes tunas dos liceus e escolas politécnicas.

À luz do ideário romântico, tratava-se de um ritual de exorcização dos últimos despojos de um traje considerado opressor, reacionário e filho do Concílio de Trento. A lenda do velho hábito talar era adensada pela leitura judicativa de Alexandre Herculano, História das origens e estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859), onde o historiador apontava o dedo a reitores, lentes e diplomados da UC, que tinha exercitado cargos no Tribunal do Santo Ofício”.[23]
 
 

Liceu Alexandre Herculano, do Porto, no ano lectivo de 1905-1906.
Foto de Padre Moreira das Neves, -o Cardeal Cerejeira, Lisboa, ProDomo, 1948

Como podemos concluir, a evolução das vestes estudantis prendeu-se mais com motivos reaccionários ou estéticos (em função da moda em voga) do que propriamente com abnegados desejos de caritativa igualdade, tanto mais que, na prática, essa igualdade nunca foi conseguida ou mesmo promovida, pelo menos até à definitiva padronização do traje que actualmente conhecemos.

 

Assim, embora reconhecendo o óbvio, ou seja que um grupo envergando um mesmo traje/uniforme acaba sempre por esbater quaisquer diferenças vestimentárias individuais, a verdade é que o propósito de um traje/uniforme é a identificação do grupo, do seu foro, natureza, âmbito.

 

 


[1] Cfr. B.M Costa e Silva, Estudantes de Coimbra, 41-42, citado por Lamy.
[2] Colares = colarinhos
[3] Tornozelo, ou seja a feição talar (talar que vem do francês “talon”, que significa calcanhar).
[4] LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,pp. 649-650
[5] COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal, Euedito, 2011, pp.49-55
[6] RODRÍGUEZ Cruz, Águeda M. – Vida Estudiantil en la Hispanidad de Ayer, citado em “QVID TVNAE?”
[7] In “QVID TVNAE?”, op. cit., p. 48
[8] NUNES, António - Identidade(s) e moda, Percursos contemporâneos da capa e batina e da sinsígnias dos conimbricenses. Bubok, 2013, p.83
[9] Cf. VASCONCELLOS, Antão - Memória do Mata-Carochas, Prefácio de José Patrocínio, 2ª edição, Porto, Empreza Literária e Typographica Editora, s/d, pp.415-416
[10] Um dos resultados da abolição do foro académico foi que de 1834 até à implantação da República, em 1910, a capa e batina era apenas obrigatória dentro do perímetro da Universidade, quando anteriormente (de 1718 a 1834) essa obrigatoriedade se estendia a toda a cidade.
[11] Op. Cit. P.83
[12] Um antagonismo que se inicia formalmente com o governo do Marquês de Pombal que quis acabar com o traje, porventura demasiado “Jesuístico” para o seu gosto, aquando da reforma que fez da Universidade, em 1772.
[13] Que quando não citamos, parafraseamos, seguindo fielmente o discurso do autor.
[14] Nunes, op. cit pp. 885-86
[15] Referido por António Nunes, com base no jornal A Liberdade, de 17 de Maio de 1875.
[16] Idem, p. 87
[17] conjunto de capa e túnica (talar) dos abades seculares de França ou de Itália, com vestido de seda negra, capa curta, volta singela e cabeleira pequena.  É um traje perfeitamente datado na Europa (remonta à década de 1660) que foi um dos trajes corporativos dos estudantes do Real Colégio dos Nobres. A abatina é mais curta e barata que a loba e de cor negra, significando essa cor o desapego ao mundo material e os seus votos eclesiásticos.
A “abatina” estudantil, modelo talar, (que os estudantes passam a designar apenas por “batina”)  não seria tão comprida como a dos lentes (até aos calcanhares = ”talons”)  e seria até bem mais curta que a capa , pelo que o uso de calções, por exemplo,  mesmo quase não se vendo debaixo da “batina” (viam-se apenas as meias), se mantivesse.
[18] Para os actos solenes usava-se o traje talar ou, no caso dos archeiros, o grande uniforme napoleónico, semelhante ao adoptado pela casa real, á base de sapato preto de fivela de prata, talabarte agaloado, espadim, alabarda, calções, meias brancas de seda, colete branco de casimira, lacinho branco de seda (papillon), luvas brancas, casaca de abas de grilo em lã azul ferrete e bicórnio de feltro, segundo António Nunes, na obra citada, página95.
[19] Idem, p. 95
[20] Embora facultativo, o seu uso era bastante generalizado por servir de sacola.
[21] Como nos dá disso conta A. Nunes, em nota de rodapé, “Mantéus com salpicos de vinho, buracos e rasgões eram o orgulho dos estudantes goliardos conimbricenses e salmantinenses. Daqui derivam certas crenças, apropriadas por estudantes de universidades e politécnicos portugueses, segundo as quais a capa nunca deveria ser lavada, bem como a regulamentação praxística do número de cortes que se dão às bainhas das capas. Em Coimbra, o costume de rasgar a bainha da capa é multissecular, e anterior ao séc. XIX é também a usança de coser os rasgões com fio de linha da cor de cada faculdade (o ponto-de-cruz é o mais apreciado)”.
[22] Podemos aqui constatar que i igualitarismo propalado era, na verdade, uma falácia, tendo em conta a descriminação total a que foram votadas as mulheres durante décadas, até à criação do uniforme estudantil, operado a partir de 1915 e que chegaria anos mais tarde à Universidade, a começar pelo Porto.
[23] Op. Cit., p.96-97

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